Moramos, como já dizia o poeta, num país tropical onde, como ensina a geografia, os verões são marcados pelas temperaturas altas e elevados volumes pluviométricos, com chuvas torrenciais geralmente no final da tarde, decorrentes do acúmulo da água evaporada ao longo do dia. Muito antes da invasão dos europeus nessas terras a que hoje chamamos “Campinas”, não havia problema algum nessa dinâmica climática, uma vez que a densa Mata Atlântica por aqui localizada, fixada sobre solos permeáveis atravessados por tantos rios, ribeirões e córregos, mantinha um equilíbrio ecológico, sustentando a vida sem grandes complicações.
Do século XVI pra cá, muita coisa mudou: das vastas plantações de cana-de-açúcar e café à pujante industrialização e urbanização de uma das maiores regiões metropolitanas do Brasil, Campinas segue o ritmo obstinado de um progresso baseado na lógica produtiva dos séculos XIX e XX – que tem se mostrado cada vez mais obsoleta e insustentável diante dos problemas do século XXI.
Se, no final dos anos 1800, a febre amarela levou à morte cerca de 20% da população campineira, a Covid-19 desvela, hoje, um cenário tão ou mais grave: além dos óbitos, dados da Prefeitura de Campinas, Central Única das Favelas e IBGE, apontam que há mais de mil pessoas em situação de rua e cerca de 150 mil vivendo em condições de habitação precária.
Os empreendimentos imobiliários se multiplicam, verticalizando tanto regiões centrais quanto periféricas no coração da RMC. A rede de drenagem capaz de abastecer os lençóis freáticos e sustentar a escassa mata nativa já quase não se vê: enterrados, ribeirões e córregos foram quase todos reduzidos a rede de esgotamento sanitário e os resquícios de um projeto de desenvolvimento urbano mais ecológico se misturam à degradação de espaços públicos como o Córrego Proença, a “valeta” da Orosimbo Maia, o Largo do Carmo, a Praça XV de Novembro, o Largo do Pará, a Praça Carlos Gomes – lugares que guardam as origens de Campinas e, cada vez mais, expõem as consequências da marcha predatória pela mercantilização da cidade.
Longe do Centro, a expansão urbana em loteamentos afastados reforça as contradições e riscos da especulação imobiliária sem atenção a políticas públicas socioambientais: a destruição da vegetação nativa é sucedida pela impermeabilização de solos, alteração de dinâmicas de escoamento e a expansão de loteamentos que, muitas vezes, não possuem infraestrutura básica para atender à população, incluindo rede de água e eletricidade.
Para famílias e núcleos populacionais mais pobres, essa lógica reverte-se na formação de bolsões de pobreza, favelização e negação de direitos sociais pela ausência de equipamentos e serviços, como educação, segurança, saúde, mobilidade, lazer e emprego. Em muitos casos, a precarização das condições de vida dessas pessoas facilita a exploração da mão-de-obra barata e disponível em distritos industriais, setores agrícolas e mineradores, gerando subempregos, trabalho informal e até mesmo análogo à escravidão.
Para a população de elevado poder aquisitivo, os condomínios de alto padrão têm prioridade ao receber investimentos tanto do poder público quanto de investidores do setor privado, e formam os subúrbios, em diferenciação às periferias, onde a promessa é, justamente, recuperar a paisagem antes destruída – árvores, lagoas, animais silvestres, ar puro, natureza (apenas para quem pode pagar caro pelo privilégio da qualidade de vida).
Quando chove, as nuvens não fazem distinção entre ricos e pobres.
Mas é inegável que o estrago em bairros e moradias precárias causa prejuízos muito maiores às pessoas vulneráveis do que em comparação aos edifícios e mansões preparados para evitar enchentes, desmoronamentos, destelhamento, desabamento, panes elétricas etc. Da mesma forma, o poder aquisitivo para lidar com eventuais danos patrimoniais, a possibilidade de pagar por um seguro residencial, e até mesmo o acesso de máquinas para reparos e a prioridade dada à Prefeitura a regiões ricas (onde quem reclama é ouvido) e regiões pobres (onde o sofrimento é silenciado) expõe que os tais desastres ambientais têm íntima ligação com escolhas políticas.
Em nome de um progresso voraz, aumenta a sobrecarga por recursos essenciais, como água, eletricidade e alimento, intensificando a poluição e a produção de lixo, a contaminação de solos e rios, enquanto a segregação socioespacial naturaliza a divisão entre pessoas exploradas, a majoritária parcela com menor poder financeiro, e elites privilegiadas que ostentam um modo de vida excludente que poderia (e deveria!) ser acessível a qualquer um. Eis o antagonismo entre o neoliberalismo e o ecossocialismo, tema que será melhor explanado nesta coluna em breve.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes