Este tema é bastante difícil de ser abordado e também de ser compreendido por nós, profissionais de saúde. Devo deixar claro desde logo, que não estou de forma alguma tentando depreciar ou responsabilizar gestores de saúde. Apenas estou tentando dar uma visão técnica de uma das áreas mais difíceis de gestão pela sua complexidade, extensão e dinâmica, que é a área da saúde. Com a experiência de ter sido 14 anos coordenador do Hemocentro da Unicamp e 10 anos secretário de Saúde – dois do Estado de São Paulo e oito do município de Campinas -, sei perfeitamente das enormes dificuldades que as gestões pública e privada apresentam na saúde e dos enormes esforços feitos no dia-a-dia por estes gestores na melhor utilização dos escassos recursos a eles oferecidos, inferior à de grande número de países, principalmente do primeiro mundo.
Antes de mais nada e para que não haja mal entendimento devo dizer que faltam sim recursos para a saúde. Ademais, vou tentar tratar este assunto de maneira a contribuir com o aperfeiçoamento da gestão em saúde.
O conceito de “perda” não vem, originalmente, da saúde e sim da indústria, mais especificamente, da indústria automobilística. Inúmeros processos de trabalho foram sendo aperfeiçoados nesta indústria para a melhoria da eficiência e consequente redução de custos de produção e do produto final.
Na área da saúde, após a segunda guerra, tivemos três “revoluções” que mudaram a forma de ver e exercer a medicina e a saúde como um todo, dentro de um mundo difícil de ser descrito e consolidado:
1- as estruturas dos serviços de saúde, dentro de critérios sanitários cada vez mais seguros, disponíveis e acessíveis, com destaque aqui, a expansão da rede de atenção básica e de Hospitais. Os hospitais, em um primeiro momento, foram gerais (por exemplo, hospitais de clínicas) e, mais modernamente, as unidades monotemáticas para atender a constante especialização e verticalização do cuidado;
2- a introdução da alta tecnologia em saúde com grande ampliação do número e tipos de fármacos e reagentes em todos os campos do conhecimento e especialidades, implantação de procedimentos cada vez mais especializados como os transplantes, a colocação de stents, as órteses e próteses (quadril, joelhos, etc.). Na área do câncer, novos quimioterápicos, novas drogas alvo-específicas como os anticorpos monoclonais e inibidores de tirosina-quinases, radioterapia cada vez mais segura e seletiva e, no campo das imagens, os tomógrafos computadorizados (CT), a ressonância nuclear magnética, o PET-CT etc. No campo da pesquisa nas ciências em saúde, os novos métodos moleculares de investigação, diagnóstico e monitoramento bem como as pesquisas clínicas e a medicina baseada em evidências;
3- chegamos a era do “networking” com a mais intensa participação do cidadão, o conhecimento cada vez mais disponível e popularizado através da utilização da internet e de redes sociais e a utilização dos smartphones como ferramentas fundamentais de acesso e gestão do cuidado.
Quando falamos em perdas, devemos lembrar que isto ocorre em todo o mundo e em todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e desenvolvidos, independentemente de serem mais ou menos socializados.
Estudos desenvolvidos na Itália mostraram que estas perdas podem chegar a 20% dos recursos totais disponíveis. Vale salientar que, naquele país, os recursos em saúde quase dobraram em 15 anos e estamos falando de valores em Euro, isto é, moeda forte europeia. Podemos de maneira simples e didática dizer que as perdas em saúde se distribuem em seis categorias principais e nos percentuais aproximados e decrescentes entre eles: 1- sobre uso (30%); 2- fraudes e abusos (20%); 3- falha na precificação (16%); 4- sub uso (12%); 5- complexidade administrativa dos processos de aquisição e distribuição (12%); 6- falhas na coordenação do cuidado (10%).
Na Itália em 2014, a somatória estimada destas “perdas” chegou à cifra de 26 bilhões de Euros, hoje cerca de R$156 bilhões. Este é praticamente todo o orçamento do Ministério da Saúde do Brasil para 2022. Devemos lembrar ainda, que a Itália tem uma população três a quatro vezes menor que a do Brasil. O sobre uso, responsável por 30% das perdas, está ligado a sete fatores principais: 1- medicina cada vez mais defensiva onde se pede cada vez mais exames e de todos os tipos e, muitas vezes, repetidos, 2- judicialização, que se tornou um grande desafio a nossa sociedade, 3- financiamento adicional e incentivos dados pelo próprio sistema, 4- medicalização excessiva da assistência à saúde, 5- expectativas dos pacientes e famílias nem sempre com justificativa científica aceitável, 6- “turnover” de tecnologias e 7- os mais diversos conflitos de interesses.
Ainda em relação ao sobre uso, são ações habitualmente inefetivas, que podem trazer inclusive danos aos pacientes, e que podem ser inapropriados e de baixo valor. Estes recursos que são desperdiçados pelo “sobre uso” poderiam ser automaticamente transferidos aos de “sub uso” com potencial melhoria da eficiência, segurança, procedimentos mais apropriados e de maior valor dentro do estado-da -arte. Um ponto fundamental a ser destacado está relacionado a falência da coordenação do cuidado.
Neste aspecto, é crítico e fundamental que a atenção básica esteja intimamente articulada com a assistência especializada e hospitalar de modo que as admissões e altas estejam coordenadas e as informações reciprocamente disponíveis.
Como mensagem importante, é que a ciência pode e deve ajudar neste tema. Sabemos que cerca de 50% das potenciais perdas podem ser reduzidas com a aproximação da pesquisa e da prática. Sabemos ainda que, devemos aumentar os recursos em saúde. O desinvestimento que temos visto no país apenas piora a situação. Entretanto, os gestores devem buscar transferir recursos mal utilizados e de baixo valor para outros de melhor utilização e valor. Devemos ter muito cuidado com a busca excessiva de doenças, as definições expandidas de doenças e o excesso de medicação.
Devemos sempre melhorar nosso conhecimento, informar aos pacientes os prós e contras de tudo o que fazemos ou planejamos, produzir consensos e diretrizes mais realistas e dentro do conhecimento maduro e essencial e investir em pesquisas de todos os níveis para que ciência e assistência estejam cada vez mais próximas e complementares.
Devemos aperfeiçoar sempre o cuidado. Lembrar do paradoxo que pode ocorrer: muita medicina, menos cuidado!
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.