Como se tivesse acabado repentinamente a guerra na Ucrânia, um conflito milenar envolvendo Palestina e Israel tomou as manchetes nos últimos dias, mais uma vez vendendo sensacionalismo na busca por heróis e vilões, salvadores e culpados, o bem e o mal, num cenário de caos e violência que expõe, há décadas, milhões de pessoas à fome e a pobreza. Nas guerras engendradas pelo capitalismo há, sim, dois lados: os que lucram e os que morrem.
Antes de analisar as partes envolvidas em mais um capítulo dos conflitos árabe-israelenses, há que se considerar, também, que nem o Hamas, partido político armado fanático-religioso, e nem o atual governo de extrema-direita de Israel, liderado por Netanyahu, podem ser tomados como sinônimo do povo palestino, majoritariamente islâmico, ou do povo israelense, em sua maior parte judeu.
Quem cometeu atentados terroristas na última semana contra civis israelenses foram extremistas do Hamas, e não o povo palestino. Quem segue o plano de massacrar e exterminar civis em Gaza é o governo extremista de Israel, e não o povo israelense.
Destacar esse ponto é fundamental para compreender que a convivência pacífica e democrática entre israelenses e palestinos, sejam judeus, islâmicos ou cristãos, é possível.
Todavia, há um longo histórico de conflitos e impasses na coexistência de povos que reivindicam o direito divino de ocupar um território localizado entre as férteis planícies do Nilo, ao norte do Egito, e da Mesopotâmia, atual Iraque. Da chegada de Moisés, no século XIII a.C., à região disputada com os “Povos do Mar” (principalmente os Filisteus), às invasões babilônicas no século VI a.C. e à diáspora judaica forçada pelos romanos após o assassinato de Jesus (um palestino judeu), os descendentes dos povos hebreus foram perseguidos e enfrentaram conflitos devastadores na luta por sua sobrevivência durante milhares de anos.
Com o nascimento e a peregrinação de Maomé, profeta do Islã, nos séculos VI e VII d.C., a disputa pela Terra Santa passou a envolver os três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) e impérios poderosos, como o Bizantino, o Romano e o Otomano. Esse último, que controlou grande parte do Oriente Médio desde o século XVI, só foi derrotado na primeira guerra mundial pelo Reino Unido e pela França.
Desde então, o intervencionismo anglo-francês tem alimentado disputas internas por poder, forçando diásporas no mundo árabe e a intolerância ocidental aos muçulmanos, como ficou nítido após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e durante a crise dos refugiados na última década, efeito colateral do desfecho fracassado da Primavera Árabe em países como a Síria.
Durante a segunda guerra mundial e a ascensão do nazismo, milhões de europeus judeus foram forçados a deixar seus lares diante do genocídio perpetrado por supremacistas ultranacionalistas. Muitos retornaram a Israel, onde, há séculos, estava a Palestina ocupada por muçulmanos.
Ali, a convivência de judeus e islâmicos, embora fosse possível, passou a converter-se na rivalidade entre israelenses e palestinos, sobretudo pela presença de minorias radicais que não apoiam a criação de Estados laicos e democráticos, mas nacionalistas, militarizados e teocráticos, a exemplo de judeus sionistas e de jihadistas islâmicos.
Com a derrota do nazifascismo e o início da polarização da guerra fria, os EUA buscavam uma forma de acessar o Oriente Médio – tanto para explorar os recursos naturais ali presentes, como o petróleo, quanto para influenciar cultural e economicamente a região próxima da União Soviética. Dada à presença significativa de judeus nos EUA, na França e no Reino Unido, países alinhados ao capitalismo ocidental e membros poderosos do Conselho de Segurança da ONU, uma resolução das Nações Unidas cria, em 1948, os Estados de Israel e da Palestina, numa divisão arbitrária que deixa os dois lados insatisfeitos.
A partir daí, pelo menos três grandes guerras árabe-israelenses ocorrerem: a primeira, no mesmo ano; a segunda, em 1967 (guerra dos Seis Dias); a terceira, em 1973 (guerra do Yom Kippur) e, depois, as chamadas Intifadas, entre 1987-1993 e 2000-2005, com perseguição e execução de lideranças palestinas, além de vários outros conflitos violentos, como o atual. Séculos de guerras, mortes e destruição pelo controle de uma terra dita prometida por Deus, encharcada com sangue de pessoas inocentes e a pólvora dos que lutam por si mesmos.
Em todos esses episódios, Israel contou com incondicional apoio financeiro e militar dos EUA, suficiente para garantir sucessivas vitórias e considerável ocupação de territórios palestinos mesmo diante de alianças formadas por países que historicamente se opõem à criação do Estado judeu, como Irã, Jordânia, Iraque, Síria, Líbano e Egito.
Com a dissolução da URSS, em 1991, o apoio da Rússia à Palestina, que já era discreto, passou a se concentrar na Síria e no Irã, abandonando o povo palestino, especialmente em Gaza, ao controle militar imposto por Israel. Organizações internacionais reconhecem que o povo palestino vive um apartheid, ou seja, encontra-se confinado em condições subumanas, sob tutela de um governo autoritário estrangeiro, que não foi democraticamente eleito e não é legitimado pelo povo que controla usando violência.
Diante da desolação, da fome a da miséria assolando os palestinos, movimentos que buscavam soluções diplomáticas para a criação de Estados laicos e democráticos, como a OLP (Organização pela Libertação da Palestina), liderada pelo Nobel da Paz, Yasser Arafat, foram perdendo espaço para grupos religiosos extremistas, como o Hamas e a Jihad Islâmica, que se utilizam do terrorismo para cometer atrocidades sob a prerrogativa da luta armada pela liberdade, seguindo preceitos religiosos.
Entre o fanatismo de milícias fundamentalistas que sequestram e assassinam civis e o massacre de um governo militarizado que ataca bairros residenciais e até mesmo hospitais, não há argumento que justifique as monstruosidades cometidas. O ultranacionalismo, o fanatismo religioso e o conservadorismo dogmático seguem na direção oposta às lutas por justiça social, dignidade humana e proteção à vida.
Diante do veto dos EUA à resolução proposta pelo Brasil ao Conselho de Segurança da ONU, defendendo diálogo e busca por consenso durante um cessar-fogo bilateral e ações de ajuda humanitária aos milhões de civis desabrigados nas zonas de guerra, principalmente em Gaza, cai por terra, mais uma vez, a lenda do país-herói, vigilante da ordem mundial.
As guerras não têm fim porque têm fins, finalidades: garantir a venda de armas e legitimar o massacre dos dominadores sobre povos que ocupam áreas onde há recursos estratégicos e economicamente atraentes para lideranças mercenárias que priorizam o poder e o dinheiro, não a vida, a paz e a democracia.
Coreias, Vietnã, Caxemira, Irã, Iraque, Iugoslávia, Somália, Afeganistão, Kuwait, Sudão, Líbia, Síria, Ucrânia. A lista cresce enormemente se forem incluídas intervenções militares e políticas derrubando governos democráticos e financiado ditaduras, a exemplo da América do Sul, durante a Operação Condor, ou através de políticas de genocídio de populações marginalizadas, como na farsa da guerra ao narcotráfico.
Milhões de pessoas assassinadas, principalmente civis inocentes, incluindo crianças, cidades destruídas, países arruinados e centenas de bilhões de dólares gastos com armas de destruição em massa num ciclo de violência movido a ódio, medo e crueldade. Extremamente eficaz para quem lucra com a indústria da guerra, é importante destacar.
Se todos esses recursos fossem convertidos para políticas públicas de combate à pobreza e às desigualdades socioeconômicas; investimentos em educação, saúde, habitação, esportes, cultura, produção e acesso a alimentos; fortalecimento de estruturas político-econômicas e instituições que garantissem a autodeterminação dos povos e a legitimação de governos democráticos – não seria mais improvável, dessa forma, que grupos extremistas ganhassem popularidade e adesão de pessoas revestidas de cidadania, ao invés de desespero e ressentimentos? Ou que lideranças populistas, extremistas e adoradoras do ódio fossem desprezadas ao invés de transformadas em mitos ou falsos heróis?
Assim, talvez, as guerras tivessem fim. E, com sorte, o sistema que se vale delas para se perpetuar, hediondo e vil, como o único caminho possível para os frágeis progressos da humanidade, também.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte