A tarde anuncia na minha varanda um momento de paz e harmonia com todas as coisas do homem. Aliás, poucas coisas, o canário se alimentando em um naco de jiló, um parrudo bem-te-vi que descansa na grade do parapeito e algumas crianças brincando em balanços. Os pais estão atentos – e lembro do meu pai que nunca estava por perto, trabalhando e trabalhando, e quando chegava queria saber o que os filhos tinham aprontado. Era a vida de todos nós, dos pais e filhos, da vida que se derramava pelas ruas do velho Taquaral.
Nunca mais vi o Tonhão e o Joanim, filhos do Coronel Santana, vizinho de casa e padrinho do meu mano Djalma. Marlene era a filha mais velha e namorava um cabo do Exército que, quinze anos depois, me agrediu em uma sala da Escola Preparatória de Cadetes, querendo saber coisas da minha vida. Disse a ele que tinha sido vizinho da Marlene e aí ele me bateu mais ainda. Hoje, bem sei, que ele gostaria de esmurrar a Marlene, a namorada que mandou ele embora. O infeliz morreu, quarenta anos depois, e eu sigo a minha calçada de vida. A vida, e devo repetir que bem sei, é cruel, mas, sem dúvida, natural como o ar que respiro, como a água que mata a minha sede, e o sono que me avisa que amanhã a vida segue.
Arrependo-me de muitas coisas. Mas viraram apenas arrependimentos. E deles não me arrependo. Viver sempre será o impossível da vida, do viver sem arrependimentos.
E olho as coisas da cidade, o vaso de flores de uma sacada de apartamento, da moça que limpa as calçadas e sigo imaginando suas vidas, da senhora que cuida das plantas, do companheiro que aguarda a sua companheira, suada e cansada de limpar o lixo da cidade. Viver é se deixar levar pela vida, de buscar um rumo qualquer de esperança, de educar filhos e alimentá-los com suas ações cotidianas, ensiná-los com os exemplos naturais da sobrevivência honesta e, assim, honrar a elegância herdada dos bons homens e mulheres de sua família.
Bem gostaria de carregar cavalos em meu peito, como bem cantou Amancio Prada em sua bela canção Emboscados. E assim vou com o meu pangaré da vida, adiante que estou da vida dos cavalos e dos fantásticos jumentos – animais, digo eu, sagrados e que jamais deveriam ser montados ou escravizados para levar nada além de suas carnes, ossos e dignidade.
A única e boa política é a da boa vizinhança, levar um pedaço de bolo para a vizinha – de preferência passar por cima do muro ou, no fim da tarde, oferece-lo no encontro de cadeiras na calçada. Essa é a boa política.
O resto são conchavos de marmanjos que se ajeitam em conversas traiçoeiras, uns mais, outros mais ainda – pois não existe menos entre eles. E a conta, é claro, quem paga somos nós que sonhamos com dias melhores de emprego, de educação e saúde. E mesmo assim seguimos em frente e sonhando por dias melhores, por justiça terrena ou celestial.
Não existe besta vida quando se caminha com sinceridade e compaixão para com os necessitados. Besta são esses tais políticos que se acham senhores da lei e da verdade. Eles são apenas reflexo das penas do inferno existencial em que vivem – e com seus míseros discursos tentando convencer seus eleitores para o mesmo martírio moral. Somos, os eleitores, os bons políticos, pois agimos com a boa-fé de quem busca o melhor para os seus semelhantes.
Infelizmente, a recíproca não é correspondida e os espertalhões se acham acima da carne seca – lugar, aliás, de que nunca saíram. E de lá não sairão até que tenhamos um sistema justo de escolha, voto distrital e parlamentarismo. O resto é politicalha e um bando de otários eleitores. E que a prosa da vida siga adiante. Inté.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico