Há uma brisa chegando da Mantiqueira. Vem calma como as mãos de carinho da moça companheira. Vem sem pressa de chegar ou ir embora. Ela chega nas minhas costas e se esparrama pelos meus braços, mãos e dedos. E assim arranjo um outro jeito de pensar as coisas, meus valores morais, minhas dores, minhas perdas emocionais, e, mais que tudo, acabo de ganhar uma nova manhã de palavras.
Mas o Sol é muito brincalhão e mexe com as minhas ideias. E assim me deixo levar pelas suas brincadeiras. E centenas de painas voam atrás de outras terras – e como uma árvore tão forte e bruta consegue florir e gerar pequenas nuvens vegetais, todas elas elegantes em seu voo, nuvens de painas, leves como um beijo que se ganha em uma manhã?
Não tenho nada a perder com mais um dia de pandemia, se esconder das ruas, das praças, dos abraços de amigos, do trocar palavras quando se toma um café no Regina. Estamos todos desaparecidos de nós mesmos.
Aliás, sempre estivemos longe de nossos sonhos, envolvidos em ganhar dinheiro, trabalhar e trabalhar, e sempre trabalhar. Vez ou outra tínhamos tempo para uma noite de seresta, boêmia, troca de poesias e canções. Mas a noite terminava e o Sol anunciava que o trabalho dele era o mesmo que devíamos.
Enxada na mão, longos canteiros de café, sempre os comunistas tinham essa mania de quebrar nossas mais singelas emoções. Naquela madrugada, nos primeiros dias de 1970, quebrei o nariz de um idiota e, também, o dedo anular da minha mão direita. Comunista de boteco era uma coisa muito chata. E por meses fiquei sem tocar violão. E isso foi ainda mais chato. E o Sol veio com o seu sorriso amarelo, quase se desculpando pelo fato acontecido…
E a tarde veio chegando, o passarinho se aquietou na gaiola, e, assim, ambos estamos vivendo a nossa solidão. Não estamos sozinhos; apenas estamos em solidão ancestral. E assim estamos nos preparando para mais uma noite sono, buscar, quem sabe?, um sonho que nos faça renascer e honrar uma nova manhã.
Vou enxadando aqui algumas palavras e colher algumas ideias na tela do computador. O passarinho está quieto.
A noite já se despencou e ele aguarda quem o levará para o seu guardado. Levi Ramiro é o nome do passarinho, um arisco canário belga. Levi Ramiro é um velho amigo violeiro. E assim dele lembro todos os dias, manhãs, tardes e noites, o que, aliás, é um jeito de cuidar de um violeiro amigo, gente de boa chegança, de boas palavras, e de sustança moral apalavrada.
A Mantiqueira começou a soprar um vento frio e tratei de guardar o passarinho. E assim estou sozinho na noite que despencou na mata da roça. E assim vou recolhendo as ferramentas e tratando de me recolher também.
Apenas as palavras teimam em varar a noite. Guardo a enxada e o ancinho.
São ferramentas que perdem a serventia quando a escuridão adormece a plantação das ideias, dos verbos, das sílabas, das letras. E assim as palavras perdem o sentido do momento. E paro de capinar.
Hora da janta, da sopa de legumes, do banho e do pensar nas merrecas da vida. Tevê ligada, notícias, e aí lembro de um poema do amigo Alex Polari de Alverga, escrito em um papel qualquer que ele achou no pátio do presídio de Ilha Grande. Sua companheira foi visita-lo e depois que ele a viu indo embora, escreveu: “ E assim ligo o rádio atrás de notícias suas”. Alex Polari foi por duas vezes condenado à prisão perpétua pelo tribunal militar da ditadura Médici. Ele tinha menos de vinte e cinco anos de idade. Com o fim da ditadura, foi solto e sumiu do mapa. Virou guru do santo daime. E assim perdemos uma vanguarda da democracia e um poeta de elegante pena filosófica.
Capino palavras e lembranças. Sei muito bem o que vivi e dos muitos companheiros que foram mortos nos porões da ditadura.
Falam os bolsonaristas de sete de setembro em letras minúsculas, pois anões que são diante da democracia que hoje vivemos. Gostaria de outras palavras, mas bolsonaristas não entendem o significado de cada letra que forma a palavra d-e-m-o-c-r-a-c-i-a. Não entendem o cabo de enxada; não sabem o que é carpir uma rua de café. Não respeitam o direito de alguém pensar o contrário. E já faz muito tempo que desejo uma bandeira sem cor para não descorar. É isso.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico