Os olhos miram a moça da vitrine e assim se apaixona por um manequim. E no dia seguinte passa pela calçada e fica espiando. E muito tempo passa até que ele vê uma moça trocando a roupa do manequim. Ele não gostou e nunca mais olhou para a manequim de roupa rosada. E assim mudou de caminho e de sentido.
Vezes ou outras entendo que o dia está esquisito e volto nos calcanhares. Fico quieto no meu canto, olhando meus joelhos e minhas mãos. Nada sei deles e muito menos de mim. E agora já é um pouco tarde para espionar os meus interiores. E assim paro e vou cuidar da sopa. Vou tratar de lavar a pele e os meus assombros. O jornal fala disso e daquilo e Bolsonaro é um isso e aquilo. É tudo o mais do mesmo. E o presidente segue impune. E somos assim todos punidos pela sua incúria. Merda de presidente. Merda de Congresso. Merda de País. E merda de mim mesmo. E assim somos um País de merda.
E a lesma lerda segue o seu caminho pelos cantos da varanda. E sou uma lesma quando caminho pelas calçadas da minha cidade, nada fazendo, nada me importando, apenas olhando e olhando as árvores das praças. Besta vida de olhar árvores e voltar para casa sem notícias de passarinhos.
O Brasil é assim, sem notícias de si mesmo. Apenas toca o burro pra frente e seja lá o que o diabo quiser. Deus já nos abandonou há muito tempo, desde os tempos de Antão – que nunca soube quem era e nem pretendo saber.
Vez ou outra entro na igreja e fico aguardando um momento de paz. E ela chega rápida como um vento matinal. E acendo uma vela e rezo velhas orações aprendidas na capela do Liceu Salesiano, onde fui coroinha e aprendi um pouco de latim. Oremos e oremus – e assim sigo em todas noites insones, apesar dos remédios e da bela companhia da companheira, adormecida e solene ao seu travesseiro – e assim a olho e também busco adormecer.
E os sons da cidade desaparecem e assim ouço apenas o respirar tranquilo da moça que adormece. O mundo está adormecido e busco adormecer também. Sei bem que há uma Lua enorme lá fora, uma canção de bar, uma madrugada insone.
E me aquieto no meu canto de cama. E apenas me deixo levar por lembranças de boêmia, do violão do Alfredinho Soares, pela voz da Celinha Niero, pelo jovem cavaquinho do Pezão. E a Adega Florence adormece em mim. Os italianos adormecem em mim. Os muitos amigos que desapareceram adormecem em mim. E em total e completa solidão adormeço minhas memórias.
Não estou só e tampouco entristecido com a vida que levo. E aqui estou escrevendo alguma coisa que se faça lembrar pelos tempos que virão. E assim encerro mais uma tarde que veio me visitar. E assim aguardo mais um dia, mais uma tarde de Verão. É da vida. Ou pelo menos da vida que levo.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico