Sábado, 19 de abril de 2014, véspera do jogo entre Atlético-MG x Corinthians, em Minas Gerais, pela 1ª rodada do Campeonato Brasileiro. Foi nessa data e nessas circunstâncias, há exatamente 10 anos, que a imprensa esportiva brasileira perdia um de seus maiores expoentes: o narrador Luciano do Valle, dono de uma voz inconfundível que marcou época.
Campineiro, nascido no dia 4 de julho de 1947, ele morreu aos 66 anos, vítima de um infarto sofrido dentro da aeronave que o transportava de Congonhas para Uberlândia, palco da partida que transmitiria no dia seguinte. Ele chegou a ser encaminhado para o hospital, mas o coração não resistiu. A morte súbita aconteceu apenas um ano após o locutor completar 50 anos de carreira, e a menos de dois meses do início da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
Ao todo, Luciano do Valle cobriu 10 edições de Copa do Mundo e também uma dezena de Jogos Olímpicos, entre outros grandes eventos esportivos, primeiro no rádio e depois na televisão. Logo após narrar a Copa de 1970, no México, que terminou com o tricampeonato mundial da Seleção Brasileira, Luciano do Valle passou a trabalhar diante das câmeras na Rede Globo, onde permaneceu por pouco mais de uma década. Lá, transmitiu os primeiros títulos brasileiros na Fórmula 1, conquistados pelo piloto Emerson Fittipaldi, em 1972 e 1974.
Luciano do Valle foi um dos grandes incentivadores do futebol feminino, além de pioneiro em trazer o futebol europeu e os esportes americanos para dentro dos lares brasileiros através da televisão. Em 1989 e 1993, na Band, Luciano voltou a narrar vitórias de Emerson Fittipaldi, desta vez nas 500 Milhas de Indianápolis.
Já na década de 80, ao se mudar para a TV Record, Luciano promoveu o “Grande Desafio do Vôlei”, que detém até hoje o recorde de público da história da modalidade. O inesquecível evento reuniu mais de 95 mil pessoas no estádio do Maracanã para assistir ao confronto entre Brasil e União Soviética, em julho de 1983. O jogo terminou com vitória brasileira por 3 sets a 1 e impulsionou a popularidade daquela que viria a ser chamada de Geração de Prata.
Na sequência, Luciano do Valle transferiu-se para a TV Bandeirantes e revolucionou a emissora, tornando-a conhecida pelo slogan “Canal do Esporte”. Mostrando-se um grande visionário, encabeçou o programa “Show do Esporte”, que mantinha até 10 horas de programação esportiva aos domingos, com exibição de diversas modalidades como basquete, boxe e até sinuca. O “Show do Esporte” ficou mais de 20 anos no ar e voltou a ser exibido pela Bandeirantes em 2020 – continua no ar até hoje.
Orlindo Marçal, o homem que lançou Luciano do Valle
A brilhante trajetória de Luciano do Valle começou no rádio em Campinas, ainda no início dos anos 60. No entanto, ao contrário do que a maioria acredita, a estreia nos microfones não aconteceu na Rádio Educadora, atual Bandeirantes.
De acordo com o primo Raul Maudonnet, a primeira experiência de Luciano como locutor ocorreu na Rádio Publicidade e Cultura, hoje CBN, graças a um radialista chamado Orlindo Marçal Oliveira do Valle, que detectou talento no então jovem de apenas 15 anos. Apesar da coincidência do último sobrenome em comum, eles não tinham nenhum grau de parentesco.
“Foi o Marçal que deu a primeira oportunidade para o Luciano. Se tem uma pessoa com valor nessa história é o Marçal. Ele foi o responsável pelo pontapé inicial na carreira do Luciano. Eu vi com meus próprios olhos”, atesta Raul Maudonnet, primo de Luciano do Valle.
“Na época, o Marçal tinha um programa maravilhoso que Campinas inteira ouvia, com músicas, informações e comentários. Ele colocava o telefonema das pessoas no ar. Era nota 10. O Marçal era muito importante no meio da comunicação”, relembra Raul Maudonnet.
“Eu não conhecia o Marçal, mas mesmo assim fomos até a Avenida Benjamin Constant e subimos no prédio onde ficavam a Rádio Cultura e a Rádio Brasil, que pertenciam aos irmãos Abel e Sinésio Pedroso, respectivamente. O próprio Marçal nos atendeu e o Luciano pediu para fazer um teste com ele. Marçal foi muito esperto e já levou o garoto até a cabine para a leitura de uma música em inglês. Luciano detonou e dali já começou a fazer locução comercial na Cultura“, revela o primo de Luciano do Valle.
“O Luciano dificilmente teria uma oportunidade dessas em São Paulo, talvez só mesmo em uma cidade menor como Campinas. Como eu gostava bastante de rádio, inclusive depois até trabalhei nessa área também, ele me pedia para apresentá-lo a alguém da crônica. Sempre frequentei o Tênis Clube e o Guarani, então ele sabia que eu tinha um certo entrosamento na sociedade”, acrescenta Raul Maudonnet, bugrino de coração, ao contrário de Luciano do Valle, pontepretano fanático.
“A mãe de Luciano [Teresa de Jesus Bento] era irmã da minha mãe. Nós éramos primos-irmãos. Meu nome é Raul Bento Maudonnet e ele se chamava Luciano Bento do Valle. O sobrenome Valle era por parte do pai [Rubens do Valle], que tinha um comércio em Campinas, mas o negócio quebrou. Por isso, eles se mudaram para São Paulo, onde foram tentar se recuperar. Lá, inclusive, a mãe abriu uma lojinha de confecção. Porém, como a nossa faixa etária era a mesma, o Luciano sempre voltava para Campinas e ficava na minha casa na Rua Maria Monteiro, no Cambuí. Ele ficava mais aqui conosco do que com os pais dele em São Paulo”, relata Raul Maudonnet. “Eu e Luciano ficamos muito tempo juntos e unidos, mas com o passar do tempo, cada um foi para um lado. A gente passou a se encontrar somente em reuniões de família”, completa.
“Na infância, Luciano irradiava perfeitamente os jogos de futebol de botão. Ele já nasceu com vocação e carisma, então sempre despontou. Luciano era completo e ainda foi se aprimorando com o tempo”, descreve Raul Maudonnet.
Após cerca de quatro meses trabalhando ao lado de Marçal na Cultura, Luciano do Valle foi contratado pela Rádio Educadora, de Campinas, para atuar como repórter volante. “Luciano começou na Educadora praticamente na mesma época em que Faustão e Oliveira Andrade. A equipe era fantástica e ele aprendeu muito com Pereira Neto, Pereira Esmeriz e Lombardi Netto. Na época, a Educadora já pertencia à Bandeirantes, embora ainda não tivesse esse nome. Ficava na Avenida Francisco Glicério, número 957, bem no centro de Campinas”, recorda Raul Maudonnet, que também integrou a equipe da Rádio Educadora nessa época.
“Na época, em termos de audiência, a Educadora vinha em primeiro lugar, a Brasil em segundo e a Cultura em terceiro. Educadora e Brasil eram as emissoras com mais força no esporte, enquanto a Cultura não era tão competitiva”, contextualiza Raul Maudonnet.
Na sequência da Educadora, Luciano do Valle migrou para a Rádio Brasil, onde foi companheiro de Sérgio José Salvucci, um dos maiores cronistas esportivos de Campinas, e virou definitivamente narrador de futebol. “Eu trabalhei com o Luciano na Brasil durante uns dois ou três anos. Ele já tinha me levado para ser rádio escuta na Educadora e depois me indicou para fazer plantão esportivo na Brasil, substituindo o Gilberto Amorim”, conta Raul Maudonnet.
Após completar 18 anos de idade, com o objetivo de alçar voos maiores na profissão, Luciano do Valle deixou Campinas para trabalhar na Rádio Gazeta, em São Paulo, a convite de Pedro Luiz Paoliello, considerado um dos maiores narradores esportivos brasileiros.
“O prédio da Gazeta ficava na Avenida Paulista e eu ia com o Luciano até lá. Na época, o Galvão Bueno ocupava um cargo abaixo dele”, aponta Maudonnet.
Depois disso, Luciano do Valle trocou a Rádio Gazeta pela Rádio Nacional, também na capital paulista, onde passou a narrar outras modalidades além do futebol. Não demorou muito até virar homem de televisão e principal locutor esportivo da Rede Globo.
“Quando o narrador Geraldo José de Almeida morreu, em 1976, o Luciano entrou no lugar dele e teve a ascendência que todo mundo sabe na Globo. Mas todo o início aconteceu em Campinas e eu tive o prazer de encaminhá-lo até o Marçal, que viu potencial nele e o abraçou. Felizmente, as coisas acabaram saindo de maneira muito positiva”, celebra Raul Maudonnet, orgulhoso.