Há três décadas falamos e almejamos a “regionalização da saúde” com consequente regulação regional de serviços aos cidadãos e pacientes do SUS. Em agosto de 1993, em artigo publicado pelo Jornal da Unicamp* e no exercício da Secretaria de Estado da Saúde, eu já considerava este projeto necessário e prioritário. Neste período tínhamos grandes limitações tecnológicas para esta implantação. A revolução da informática e internet apenas começava. Enfim… não foi possível.
Os princípios do SUS de universalidade, equidade, hierarquização e descentralização são fundamentais para garantirmos acesso e qualidade de serviços com eficiência e rapidez.
Há dez anos (2011), a Secretaria Estadual de Saúde (SES-SP) inaugurou a Central de Regulação de Ofertas e Serviços de Saúde (CROSS) no Estado de São Paulo. Hoje a CROSS conta com cerca de 300 servidores sendo que 120 são médicos reguladores e que trabalham 24 horas por dia, sete dias por semana. A CROSS operacionaliza a regulação de ofertas de serviços de saúde atendendo a orientação do Grupo Técnico de Regulação da SES-SP. Esta regulação é feita por meio do Portal CROSS, um sistema via web que permite a visualização da rede de assistência nas diversas regiões de saúde do Estado com o acompanhamento de atividades, emissão de relatórios, fornecimento de indicadores, etc. É uma ferramenta muito importante, bem construída e segura, contendo seis módulos de regulação: pré-hospitalar, urgências e emergências, leitos, ambulatórios e fornecimento de indicadores. O número de atendimentos é enorme e abrange milhares de consultas e procedimentos.
Durante a pandemia da SarsCov2, a CROSS tem tido papel nuclear na tentativa de organizar o sistema com demandas e pressões que, em alguns momentos, atingiu níveis de grande dramaticidade.
Não resta dúvida da importância e qualidade da CROSS como ferramenta fundamental da regulação de serviços do SUS. Entretanto, e aqui não vai qualquer crítica a este sistema, vejo como um problema o gigantismo de seu trabalho. A complexidade, a diversidade estrutural e populacional e a dimensão territorial do Estado de São Paulo, comparável a muitos países europeus, torna este trabalho de regulação em todo o Estado muito mais desafiante. Em minha opinião, a solução destes problemas está na descentralização da regulação, respeitando e potencializando as características das regiões de saúde do Estado de São Paulo.
Em 2018, a SES-SP assinou convênio dentro da Região Metropolitana de Campinas, no sentido de implantar a CROSS regional no âmbito da Diretoria Regional de Saúde de Campinas (DRS-7). Seria a primeira do Brasil e, portanto, seríamos pioneiros desta estratégia no âmbito do SUS. Pessoalmente, eu dizia que a Secretária Municipal de Saúde de Campinas e a SES-SP iriam “juntar as trouxas”, fazendo uma central única com o compartilhamento da estrutura, de pessoal técnico (incluindo médicos reguladores), materiais, etc. Houve um grande entusiasmo nesta implantação pelos governos municipais da região, pois este sempre foi um anseio e crença de que poderíamos melhorar e muito nosso trabalho, usando as ótimas ferramentas da CROSS.
Infelizmente, isto não ocorreu e este projeto está adormecido até o momento.
Cabe aqui fazer um esclarecimento. A cidade de Campinas tem a sua central de regulação de serviços de saúde, criada pela lei complementar 66 de 16/04/2014 e regulamentada pelo decreto 20.092 de 26/11/2018. Esta regulação, atua, portanto, há vários anos, e utiliza também a plataforma da CROSS em suas atividades. Antes da pandemia, a regulação de Campinas atuava das 6h às 22h, sendo que durante a madrugada a CROSS-SP fazia a regulação.
No início da pandemia tomamos uma decisão fundamental ao enfrentamento da crise sanitária: a regulação passou a trabalhar 24h. Talvez, esta tenha sido uma das decisões mais acertadas da gestão municipal, nesta gravíssima crise. Tínhamos a possiblidade de ter informações gerenciais constantes e imediatas. Com isto, fazíamos as correções de rota, as parcerias, as intervenções etc. Os médicos reguladores tinham a oportunidade de colocar os pacientes nos leitos mais adequados, no momento certo, utilizando a melhor logística de encaminhamento e internação.
Com isto, os hospitais, as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), o SAMU e todos os envolvidos tinham otimizados os seus trabalhos, com melhor gestão do tempo e dos recursos disponíveis. Assim, pudemos dar a melhor assistência possível e não precisamos transferir qualquer paciente de nosso sistema público para São Paulo. Porém a CROSS regional continua sendo absolutamente necessária e factível. A estrutura e a experiência adquirida, associadas a parceria e o know how da CROSS e da SES-SP, são prorrogativas que tornam este projeto possível e, rapidamente, operacional. Devemos voltar ao convênio de 2018 e colocá-lo em prática. Com o que temos e aprendemos, os custos econômicos serão irrisórios. Além disto, a eficiência do SUS regional será maximizada e qualificada.
Tenho a esperança que o governo do Estado, através da SES-SP, repense e reverta a decisão anterior. Este será um modelo para nosso Estado e para todo o País. Durante a pandemia sentimos muita falta desta articulação regional que poderia ter agilizado e harmonizado muitas de nossas iniciativas e ações. A regionalização, sonho nos anos 90 por quem idealizou e implantou o SUS, é uma possibilidade real em nossa região. Tenho certeza de que chegaremos lá e em muito breve.
*Jornal da Unicamp, agosto de 1993, entrevista: “A prioridade é hierarquizar”
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020