O cenário que a pandemia do coronavírus expõe, a cada dia evidencia o aumento da desigualdade em nosso país. As pessoas que já eram negligenciadas antes da Covid-19 são as que mais sofrem no momento. Mal pagas ou desempregadas, sem possibilidade de trabalhar em casa, sem dinheiro para comprar comida, privadas de licença médica, muitas vezes com depressão e outros problemas sérios de saúde, dividem cômodos apertados com suas famílias, isso quando têm um lugar para morar.
Em Campinas, desde que a pandemia teve início, em março do ano passado, a Fundação Feac (Federação das Entidades Assistenciais de Campinas), com a colaboração de uma rede de organizações da sociedade civil, atuou fortemente com ações de segurança alimentar, beneficiando 6.300 famílias, e em 2021 já são mais de 6 mil, com o propósito de chegar a 8 mil.
As áreas mais vulneráreis da cidade estão sendo vistas por pessoas que, diariamente, zelam pelo próximo.
Conversei com Jair Resende, superintendente socioeducativo da Fundação Feac, que para a coluna Empodera explica como se dá o empoderamento de populações vulneráveis. Isso significa basicamente apoiá-las em seu processo de crescimento, construção de identidade, educação, participação social e exercício da cidadania. Significa ainda promover sua autonomia e oferecer oportunidades para que desenvolvam suas capacidades, de forma que consigam exercer seus direitos e superar as limitações causadas pela pobreza e por outras situações de vulnerabilidade.
A Feac faz isso por meio de programas que reúnem projetos voltados para a proteção, o desenvolvimento integral e o bem-estar de crianças, jovens, pessoas com deficiência, adultos e idosos em situação de vulnerabilidade.
Portal Hora Campinas – De que forma é possível empoderar populações vulneráveis?
Jair Resende – O empoderamento é um processo onde as pessoas passam de forma autônoma a controlar seus destinos de forma consciente, reconhecem suas fragilidades, identificam seus potenciais, passam a exercer seus direitos e lutam por novas conquistas. Certas organizações, como a Feac, executam um papel de facilitadores e apoiadores desse processo, mas o empoderamento é um conquista pessoal e coletiva.
A Fundação Feac faz isso por meio dos programas Acolhimento Afetivo, Educação, Enfrentamento a Violências, Juventudes, Mobilização para Autonomia e Primeira Infância em Foco. Quantos profissionais estão envolvidos nesse trabalho?
Atualmente, temos 11 profissionais trabalhando nesses programas, como assistentes sociais, pedagogos, sociólogos e arquitetos urbanistas. Mas, além dos técnicos da Feac, trabalhamos como uma rede organizações da sociedade civil (OSC), presentes nos diversos territórios de Campinas. Contamos também com a parceria de diversas consultorias especializadas.
De que forma é feito o Acolhimento Afetivo?
O Programa Acolhimento Afetivo trabalha em parcerias com diversas organizações que atuam no acolhimento de crianças, adolescentes, jovens, idosos e pessoas em situação de risco social ou vítimas de violência. Basicamente, trabalhamos para que os espaços de acolhimento favoreçam o bem-estar dos acolhidos como espaços acolhedores, saudáveis e seguros, e para que os acolhidos consigam ter uma vida autônoma e consigam ser inseridos na sociedade.
Durante a pandemia tem sido possível realizar o trabalho?
A pandemia agravou bastante as diversas formas de vulnerabilidade e, inclusive, colocou nesta situação indivíduos e famílias que perderam sua fonte de renda. Neste momento, o trabalho aumenta, e mesmo com o desafio sanitário da pandemia é preciso atuar. Foi necessário fazer uma série de adaptações em projetos e ações, e agir nas mais diferentes frentes, como a segurança alimentar.
Em fase de isolamento, o número de voluntários diminuiu?
Tivemos boas experiências onde a atitude voluntária se mostrou muito forte. Neste ano, por exemplo, no Mobiliza Campinas, tivemos mais de 1.500 doações de recursos de pessoas físicas que podem ser entendidas como ações voluntárias. Nosso projeto de mentoria para jovens e pessoas com deficiência foi reformulado, e vários voluntários passaram a mentorar de forma on-line via plataforma específica.
De que forma a população pode contribuir?
Toda sociedade pode contribuir para que pessoas e populações vulneráveis possam conquistar autonomia e participarem de forma plena de todos os processos e relações sociais. O reconhecimento de direitos, o respeito às diferenças, a não aceitação de situações que perpetuam as desigualdades e a contribuição para processo de inclusão são exemplos de fatores que todos podem potencializar no dia a dia.
Pessoas sem renda e sem condições de exercer a própria cidadania, dificilmente se sentem empoderadas. A atuação de um profissional de psicologia é importante nesse processo?
A vulnerabilidade é um fenômeno composto por multifatores e o processo de superação das diversas formas de vulnerabilidade também deve ser encarado de forma ampla. O apoio psicológico a pessoas e grupos que têm seus direitos sistematicamente negados ou sofrem discriminações é, sem dúvida, muito importante para um processo de autonomia e construção do empoderamento.
Dá para sentir se as pessoas ficaram mais solidárias na pandemia?
A pandemia, sem dúvida, deixou ainda mais claras as enormes desigualdades socioeconômicas que vivemos, mas ao mesmo tempo observamos que ela não atingiu a todos da mesma forma. Se pensarmos em quem perdeu o trabalho, quem mais se infectou ou quem mais morreu nesta pandemia, veremos que as populações mais vulneráveis foram as mais atingidas. Também não podemos deixar de ver que frente à gravidade da situação, muitas redes de solidariedade se formaram, empresas, instituições e pessoas passaram a colaborar no intuito de mitigar a gravidade da crise. Claro que o prolongamento da pandemia faz com que, com o passar do tempo, essas redes encontrem dificuldades de se manter com a mesma vitalidade dos primeiros dias, porém não podemos deixar de reconhecer que a sociedade se mobilizou.
O que deixa o senhor mais sensibilizado nesses momentos? Poderia relatar algum caso que vivenciou?
O que nos deixa mais sensibilizados é saber que existem, todos os dias, centenas ou milhares de famílias em Campinas, cidade ligada à tecnologia, ao desenvolvimento, à inovação e ao empreendedorismo, que podem terminar o dia sem ter alguma coisa pra comer. São famílias que têm crianças, e isso deixa todos os envolvidos nessa luta constante em conseguir mais recursos para suprir essa necessidade, mas tem um caso que me tocou muito, de uma família liderada por uma mulher pobre que recebeu o cartão alimentação, e durante essa fase, apesar da dificuldade, conseguiu trabalho e foi à organização parceira devolver esse cartão. Ela achava que tinha sido muito importante pra ela essa ajuda no período de dois meses, mas que agora, com trabalho, esse recurso poderia ser estendido a outra família que precisasse tanto ou mais do que ela. Essa atitude nos tocou.
Vivemos num país com muitos relatos de corrupção, de dólar trocado por vacina, gente comprando casas a milhões com dinheiro que não se sabe de onde saiu, e uma atitude como a dessa senhora, com a solidariedade enxergada de forma tão ampla, realmente emociona.
Quando esse trabalho teve início? Já dá para falar em resultados?
A Feac iniciou o trabalho imediatamente, quando foi decretado o estado de pandemia, em março de 2020. Nesse período atuamos fortemente com ações de segurança alimentar, em 2020 chegamos a mais de 6.300 famílias, e em 2021 já são mais de 6.600 famílias, sendo que nossa meta é chegar a 8 mil. Também estamos apoiando a microempreendedores a reestruturarem o criarem novos negócios; apoiamos mais de 5 mil famílias a se manterem conectadas por meio de repasse de chips de celular, realizamos estudos e apoiamos as organizações que atuam nas áreas mais vulneráveis de nossa cidade.
Um programa está interligado ao outro ou eles são independentes?
O processo da vulnerabilidade é extremamente complexo, por isso atuamos em diferentes frentes. Atualmente, os programas desenvolvidos em conjunto, têm a missão de apoiar o processo de transformação dos territórios mais vulneráveis em territórios prósperos e dinâmicos.
Janete Trevisani é jornalista – [email protected]