O nome de José Augusto Lemos está nos anais da história do jornalismo musical brasileiro. Ele começou a carreira na imprensa de Campinas, como crítico cultural do breve porém marcante Jornal de Hoje, no fim dos anos 70, mas foi a partir de meados da década de 80, quando ajudou a criar e depois comandou a lendária revista Bizz, antiga publicação mensal da Editora Abril, que seus textos passaram a ganhar expressiva notoriedade e influenciar gerações de ávidos leitores.
Durante os tempos de Bizz, não faltaram encontros e entrevistas memoráveis com grandes ícones do rock brasileiro e internacional, entre eles o cantor Renato Russo, eterno vocalista da Legião Urbana, e o baixista inglês Peter Hook, ex-integrante de duas bandas históricas do passado: Joy Division e New Order.
A extensa lista particular de Lemos também conta com outros momentos especiais envolvendo influentes figuras da música, especialmente de origem britânica, como Brian Eno, um dos membros originais do Roxy Music, sua banda predileta nos tempos de juventude que passou no Reino Unido, além de Ian McCulloch (foto acima), dono da inconfundível voz do Echo & The Bunnymen.
Primeira experiência, logo com José Hamilton Ribeiro
A trajetória do paulistano José Augusto Lemos no meio jornalístico teve início na cidade de Campinas, em 1979, quando ele foi convidado com apenas 19 anos para trabalhar no então recém-lançado Jornal de Hoje, inicialmente na função de crítico de teatro.
“Na época, eu estudava Teoria Literária na Unicamp e conhecia pouco sobre teatro, só tinha visto algumas peças, mas resolvi encarar essa possibilidade. Peguei alguns livros sobre o assunto e comecei a ler para aprender o linguajar e o jargão. Foi uma experiência bem diferente e totalmente exótica para mim”, definiu Lemos, em entrevista exclusiva concedida ao Hora Campinas.
“Eu datilografava e pegava o ônibus até o trevo do Jardim do Lago para levar a matéria. Quando acabavam as laudas, eles me davam mais um maço com toda a marcação da fotocomposição. Era algo realmente arcaico pelo olhar de hoje, em que a gente manda as matérias por e-mail”, compara.
Governador de São Paulo nos anos 80, Orestes Quércia havia sido prefeito de Campinas entre 1969 e 1973 e ocupava o cargo de senador pelo estado em 1979, quando criou o Jornal de Hoje, que durou apenas dois anos na cidade, mas marcou a história da imprensa local. Em 1981, houve uma fusão com o tradicional Diário do Povo, que dominava o mercado campineiro com o Correio Popular, e o nome do mais antigo prevaleceu, com a estrutura do mais moderno.
“O Jornal de Hoje durou pouco tempo em Campinas, mas foi uma tentativa do Orestes Quércia, à época um grande cacique político da região, de ter uma publicação própria. Ao menos uma coisa ele fez certo: contratou o grande jornalista brasileiro José Hamilton Ribeiro para ser o diretor de redação”, relembra Lemos.
“Era o já lendário José Hamilton Ribeiro, ou Zé Agá, como assinava em alguns de seus textos. Até aquele ano [1979], o experiente repórter já havia conquistado três [de seus sete] Prêmios Esso de Jornalismo”, ressalta o jornalista e professor Carlos Alberto Zanotti, no capítulo “Jornal de Hoje: comunistas, grevistas e bem-humorados”, do livro “Imprensa em Campinas: Retratos da História” (2016), do qual é um dos 15 autores.
“Entrar na carreira jornalística com José Hamilton Ribeiro foi um grande privilégio para mim”, destaca José Augusto Lemos.
Dez anos antes de assumir a chefia da redação do Jornal de Hoje, em Campinas, José Hamilton Ribeiro havia publicado o primeiro de seus 15 livros, “O Gosto da Guerra”, em 1969.
“Essa obra derivou de uma reportagem que fez para a extinta revista Realidade, da Editora Abril, quando perdeu parte de uma das pernas ao pisar sobre uma mina terrestre no Vietnã, em março de 1968. Até então, 14 correspondentes de guerra haviam tido sorte pior: perderam a vida em coberturas dos combates travados entre os marines dos Estados Unidos, que apoiavam Vietnã do Sul, e as forças do Norte do país, apoiadas pelo bloco comunista”, acrescenta Zanotti, que também trabalhou no Jornal de Hoje, sob as ordens do lendário Ribeiro.
“No domingo de 18 de novembro de 1979, a edição inaugural do Jornal de Hoje, pesando quase meio quilo, chegou às bancas […] quase 150 páginas daquele que nascia com a pretensão de ser o ‘maior jornal que Campinas já teve’. De fato, foi a edição inaugural mais volumosa que se viu até então no município, mas também a que mais sujou de tinta as mãos de seus leitores, assim como a que mais abalou o ânimo de seus funcionários”, descreve Zanotti, nas páginas do livro.
“De convite em convite, foi montada a maior redação que já existira em um jornal campineiro”, afirma Carlos Alberto Zanotti, no livro “Imprensa em Campinas: Retratos da História”.
Conforme detalha José Augusto Lemos, a oportunidade de trabalhar no Jornal de Hoje veio por indicação do jornalista Laerte Ziggiatti, mais velho que ele, que havia sido contratado como crítico de música do então novo diário campineiro criado pelo político Orestes Quércia.
Com uma extensa bagagem cultural, Ziggiatti era dono da antiga loja de discos Raposa Vermelha, que ficava na Rua Padre Vieira, número 1.101, no centro de Campinas. O nome era em alusão ao disco “Foxtrot”, lançado pelo Genesis em 1972, cuja capa trazia a imagem de uma surreal mulher de vestido vermelho com cabeça de raposa.
“O Laerte era casado com a minha tia Yeda, havia morado em Londres e tinha uma coleção riquíssima de discos, com muitos que vi pela primeira vez. Eles abriram a Raposa Vermelha, que logo se tornou um importante ponto de encontro dos fãs de rock e música alternativa em Campinas. O local também era uma livraria, com livros esotéricos, poesia e todo tipo de literatura da contracultura dos anos 60 e 70”, detalha José Augusto Lemos.
“O Laerte já era conhecido em Campinas, dava palestras sobre rock e foi convidado para fazer críticas de música no Jornal de Hoje, mas ficou pouco tempo na função porque abriu uma vaga de crítico de cinema e ele assumiu, pois era aquilo que realmente queria. Naturalmente, entrei no lugar que ele deixou vago e aí, sim, estava no meu ambiente, meu departamento”, discorre Lemos, sobre a sua primeira experiência como jornalista especializado em música, deixando permanentemente a função de crítico de teatro.
“A última edição do jornal circulou em 2 de novembro de 1981, quando se comemorou Finados. Uma parte da equipe inicial já havia deixado a empresa, a exemplo de José Hamilton Ribeiro, que seis meses antes aceitara convite para trabalhar em São Paulo, no Globo Repórter, programa da mais influente emissora de televisão do País”, arremata Zanotti, no livro sobre a história da imprensa de Campinas.
José Augusto Lemos, por sua vez, ficou no Jornal de Hoje até junho de 1980. “Comecei a colaborar com a revista Som Três, de alcance nacional, dirigida por Maurício Kubrusly, e a partir daí os convites foram surgindo e as coisas acontecendo naturalmente. Passei pela Folha de S. Paulo e trabalhei em uma enciclopédia de rock lançada em fascículos, até chegar na Bizz“, conta.
Rock in Rio e surgimento da revista Bizz
O Dia Mundial do Rock é comemorado nesta quarta-feira (13), em alusão ao histórico festival Live Aid, realizado no dia 13 de julho de 1985, com dois megaconcertos paralelos em Londres, na Inglaterra, e na Filadélfia, nos Estados Unidos.
Organizado pelo músico e humanista irlandês Bob Geldof, com o objetivo de arrecadar fundos para tentar erradicar a fome na Etiópia, um dos países mais pobres da África, o evento contou com a participação de vários nomes importantes da música, como U2, Phil Collins, The Who, Led Zeppelin, Paul McCartney, Mick Jagger, David Bowie, Bob Dylan, Elton John, Sting e Queen.
Um dos pontos altos do festival Live Aid, a lendária performance do cantor Freddie Mercury no estádio de Wembley, em Londres, é retratada de forma majestosa na cinebiografia “Bohemian Rhapsody”, de 2018.
Após o estrondoso sucesso logo de cara em 1985, o Rock in Rio voltou a ser realizado outras sete vezes (1991, 2001, 2011, 2013, 2015, 2017 e 2019). Originalmente prevista para acontecer no ano passado, mas adiada por causa da pandemia de Covid-19, a 9ª edição do festival acontecerá nos dias 2, 3, 4, 8, 9, 10 e 11 de setembro de 2022. Clique aqui para conferir o line-up completo.
Já no Brasil, o ano de 1985 ficou marcado para sempre pela realização da primeira edição do icônico festival Rock in Rio, em meio ao momento de explosão do rock nacional. Idealizado pelo empresário e publicitário Roberto Medina, o Rock in Rio já nasceu entrando para a história ao atrair mais de um milhão de espectadores durante 10 dias, em janeiro de 1985, na Cidade do Rock, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
“O Rock in Rio foi um grande acontecimento no sentido de mostrar um mercado lucrativo para gravadoras e televisão. Antes disso, nos anos 70, ser roqueiro no Brasil era algo meio marginal e raras bandas internacionais vinham para o País, então não existia um mercado propriamente dito”, contextualiza José Augusto Lemos.
Reunindo 16 atrações internacionais, de Queen a Iron Maiden, além de grandes artistas e bandas nacionais, entre elas Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso, o Rock in Rio de 1985 provocou uma verdadeira revolução no show biz brasileiro. E foi nestas circunstâncias que nasceu a revista Bizz.
“Como o Rock in Rio foi um fenômeno de massa, a Editora Abril mandou uma equipe que fazia pesquisa de mercado para entrevistar o público do festival, já pensando em criar uma revista nova de música”, revela Lemos.
Nos anos 70, a Editora Abril já havia apostado fichas na Revista Pop, que durou entre 1972 a 1979, porém com viés mais comportamental do que estritamente musical. “As revistas de música normalmente não tinham muito fôlego no Brasil, mas a Abril resolveu investir na Bizz depois de perceber aquele mercado surgindo com o Rock in Rio, no auge do Verão, em janeiro de 1985″, aponta Lemos.
Nos anos 80, José Augusto Lemos colaborou com a revista SomTrês e a Folha de S. Paulo, até ser convidado para assumir a função de editor da revista Bizz em São Paulo, onde estava sendo preparada pela Editora Abril, em 1985.
“Estava só faltando um editor para São Paulo, então eu fui o último a entrar na redação”, lembra José Augusto Lemos, que chegou à Editora Abril justamente em abril de 1985 para completar o time original que daria vida à revista Bizz. Ele era o mais jovem da redação, com 26 anos.
“O redator-chefe era o José Eduardo Mendonça e o editor no Rio de Janeiro, o José Emilio Rondeau, mais experiente que eu e casado com a Ana Maria Bahiana, que também já era um medalhão da crítica musical”, destaca Lemos. Atualmente, Ana Maria Bahiana é integrante da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, em Los Angeles, nos Estados Unidos.
“Tinha que ter um editor em cada cidade porque a Editora Abril ficava em São Paulo, mas todo o mercado musical e de entretenimento estava no Rio de Janeiro”, explica José Augusto Lemos.
Em junho de 1985, a edição zero e experimental da revista Bizz, distribuída ao público como cortesia pela Editora Abril, trazia na capa Mick Jagger, lendário vocalista dos Rolling Stones.
Em agosto, Bizz chegava oficialmente às bancas, com grande destaque para o cantor e guitarrista Bruce Springsteen, apresentado na capa como “o herói do rock americano”, um ano após o lançamento do grande disco “Born in The USA”, em 1984.
Folheando as primeiras páginas da edição nº 1 da Bizz, um texto assinado pelo empresário Victor Civita, fundador e dono da Editora Abril, apresentava a revista ao público:
O aumento de público nos shows e nas danceterias, a proliferação dos programas de videoclipes e a recuperação da indústria de discos deixaram clara a necessidade da criação de uma nova publicação. Uma publicação que andasse junto com a música e a imagem em suas mais diversas manifestações.
Para isso, nós fizemos Bizz. Para acompanhar todos os movimentos ligados à música jovem, aqui e lá fora. Com informação séria e detalhada, em coberturas de shows e reportagens, e opinião equilibrada, em colunas e seções que vão manter você em sintonia.
Bizz, como você vai ver nas páginas seguintes, é vitalidade, garra e antenas ligadas. É uma revista feita para você divertir-se muito e estar sempre bem-informado a respeito da música popular mundial.
Com 20 páginas de propaganda, a primeira edição da Bizz vendeu 60 mil exemplares. “Era o mínimo que a Editora Abril precisava para manter uma revista na época. Já a segunda edição, com a Madonna na capa, vendeu 80 mil. Foi um sucesso logo de cara”, atesta José Augusto Lemos.
“A partir daí, a revista foi ganhando uma identidade e uma forma editorial diferente do que deveria ser pelo projeto original, ou seja, começou a virar uma revista mais abrangente, que não falava apenas de rock, mas também de Hermeto Pascoal, Chico Buarque e Miles Davis, conquistando uma base de leitores muito especial”, lista José Augusto Lemos.
“As gravadoras estavam finalmente investindo em propaganda e comprando páginas publicitárias, uma coisa antes bastante rara, pois era muito mais fácil fazer divulgação através do rádio, com esquemas especiais, então não precisava da imprensa escrita, mas a Bizz logo se tornou um canal direto de comunicação com a juventude que curtia rock e pop em geral no Brasil”, analisa José Augusto Lemos.
Em outubro de 1986, a revista Bizz passou a ser publicada pela Editora Azul, criada pela Editora Abril para dar vazão a publicações direcionadas.
“Os leitores eram muito ativos naquela época, recebíamos milhares de cartas e telefonemas. Havia uma pessoa só para fazer esse atendimento e passar para a redação, então isso alimentava bastante o nosso trabalho”, relata José Augusto Lemos, que chegou a assumir a direção da Bizz e permaneceu na revista até janeiro de 1994, portanto quase uma década de serviços prestados.
Em 1995, a Bizz se transformou em ShowBizz, mas alguns anos mais tarde retornou ao nome original, após uma associação com a Editora Símbolo, durando até 2001. A revista renasceu quatro anos depois, em 2005, mas encerrou suas atividades novamente, e definitivamente, em 2007, após o surgimento da versão brasileira da Rolling Stone, em 2006.
Uma “mosca na parede” nos bastidores da turnê do New Order
No final do ano de 1988, José Augusto Lemos viveu um dos momentos mais especiais de sua rica trajetória como jornalista musical, ao acompanhar de perto a primeira turnê brasileira do New Order, uma de suas bandas prediletas, surgida das cinzas do Joy Division, em Manchester, na Inglaterra, após a trágica morte por suicídio do vocalista Ian Curtis, em 18 de maio de 1980.
Bem-sucedido e bastante influente nos anos 80, o New Order misturava elementos de pós-punk com technopop, demonstrando grande interesse pelo uso de teclados sintetizadores. A formação contava com membros originais e remanescentes do Joy Division, ou seja, o guitarrista Bernard Sumner, o baixista Peter Hook e o baterista Stephen Morris, com o acréscimo da tecladista Gillian Gilbert.
“A Bizz já estava tão bem posicionada no mercado que as gravadoras abriam esse tipo de porta, convidando um jornalista da revista para acompanhar toda a turnê da banda, viajando no mesmo voo, ficando no mesmo hotel e assistindo à montagem do palco, à passagem de som”, relata Lemos.
Foi uma cobertura cheia de regalias, mas José Augusto Lemos precisou tirar uma carta da manga para conquistar o respeito dos músicos do New Order. “Alguns anos antes, eu havia lido uma entrevista da banda para o semanário britânico New Musical Express, na qual afirmavam que não gostavam de dar entrevista, pois achavam que a música falava por si só. Para eles, o ideal seria que um jornalista os acompanhasse, mas ficasse quieto como uma ‘mosca na parede’, apenas observando, sem precisar conversar, e depois escrevesse as suas impressões do jeito que viu e entendeu”, revela Lemos.
“Isso ficou na minha cabeça e, quando surgiu a oportunidade, lembrei daquilo imediatamente, portanto já fui ao encontro do New Order sabendo que essa seria a minha estratégia, o que pegou os caras de surpresa. Como eles viram que eu não estava ali de uma maneira invasiva, sem querer assediar ou encher a paciência, a gente foi desenvolvendo uma relação amistosa, até que o Peter Hook resolveu me dar uma entrevista”, relembra.
“Essa experiência com o New Order foi incrível. Os shows foram maravilhosos, aprendi muita coisa e ainda consegui uma entrevista exclusiva que eles não gostavam de dar. Acho que eu era aquela ‘mosca na parede’ que eles esperavam há tanto tempo”, brinca José Augusto Lemos, em tom de celebração.
Em um período de oito dias entre o fim de novembro e o início de dezembro de 1988, o New Order realizou seis shows no Brasil, em uma turnê que começou no Rio de Janeiro, passou pelo Rio Grande do Sul e terminou em São Paulo.
A estreia nos palcos brasileiros aconteceu no dia 25 de novembro de 1988, no Ginásio do Maracanãzinho. “O Renato Russo estava do meu lado e assistimos juntos a esse show bem na frente do palco, naquele cercadinho com grade para imprensa e convidados. Foi muito engraçado porque ele entrou em delírio quando o New Order começou a tocar. Pulava de alegria que nem uma criança, algo impressionante”, surpreendeu-se Lemos.
A apresentação do New Order em Porto Alegre foi realizada em 28 de novembro, no Ginásio Gigantinho, do Sport Club Internacional. De lá, o grupo mancuniano seguiu para São Paulo, onde tocou quatro noites seguidas, entre os dias 30 de novembro e 3 de dezembro.
“A gente estava embarcando no avião quando a assessora de imprensa da gravadora me avisou para sentar no assento do lado do Peter Hook porque ele tinha decidido me dar uma entrevista exclusiva. Naquele dia, aprendi bastante enquanto gravava a entrevista durante o voo de Porto Alegre a São Paulo. Conversamos sobre várias coisas, não apenas sobre aspectos musicais”, relembra José Augusto Lemos, com muito carinho.
O primeiro show do New Order na capital paulista ocorreu na antiga casa de espetáculos Olympia. Os outros três foram no Ginásio do Ibirapuera, onde a banda se despediu do público com direito à execução da famosa canção “Love Will Tear Us Apart”, do Joy Division, na hora do bis.
“Foi a única vez que isso aconteceu naquela turnê. Eles raramente incluíam alguma música do Joy Division no repertório, que mudava a cada noite, mas resolveram tocar ‘Love Will Tear Us Apart’. Na passagem de som, eu era a única pessoa assistindo àquilo na plateia do Ibirapuera. Foi um privilégio indescritível e um dos momentos mais especiais da minha vida como fã de Joy Division e New Order. Foi realmente inesquecível e guardarei para sempre no meu coração”, declara José Augusto Lemos.
“Considero o Joy Division uma das bandas mais importantes da minha vida. Até hoje, quando escuto, eu me arrepio. O tempo vai passando e parece que vai ficando cada vez melhor”, descreve José Augusto Lemos.
Além de despertar profundas emoções, acompanhar com atenção cada detalhe dos bastidores da turnê do New Order, com acesso privilegiado, também serviu de grande aprendizado para José Augusto Lemos, que à época integrava a banda Chance, pertencente à cena underground paulistana dos anos 80. Além disso, ele havia recém-produzido o disco “O Ápice”, da banda cult Vzyadoq Moe, lançado pelo selo independente Wop Bop, em 1988.
“O New Order tinha um aparelho reserva para cada equipamento, então eram dois sequenciadores, dois sintetizadores e dois computadores Macintosh que sincronizavam tudo. Se um deles desse problema, o outro era acionado na mesma hora, sem precisar parar o show para reprogramar. Esse tipo de detalhe, para mim, era uma coisa fascinante”, aponta Lemos.
“Na época, eu também tinha uma banda que fazia música eletrônica, então aprendi bastante acompanhando a montagem do palco com os técnicos nos ginásios ainda vazios”, ressalta Lemos.
A histórica reportagem especial realizada por José Augusto Lemos sobre a inesquecível semana que passou junto com o New Order ganhou o nome de “Diário de Bordo de um Passageiro Quase Clandestino”, publicada em duas partes pela revista Bizz, nas edições números 43 e 44, respectivamente, de fevereiro e março de 1989.
Antes da inédita vinda do New Order, a Bizz já havia realizado coberturas semelhantes, como a da primeira excursão do The Cure ao Brasil, que rendeu oito shows entre março e abril de 1987, em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Essa missão, no entanto, coube ao repórter Jean-Yves de Neufville, que produziu um suplemento especial de 10 páginas para acompanhar a 21ª edição da revista, lançada em abril.
Logo na sequência, os ingleses do Echo & The Bunnymen também estrearam em palcos brasileiros, com direito a oito apresentações na primeira quinzena de maio de 1987, em três cidades de estados diferentes. Somente em São Paulo foram cinco noites seguidas de exibição no Palácio das Convenções do Anhembi.
Embora tenha marcado presença nos shows da banda de Liverpool na capital paulista, a fim de escrever um relato para a edição número 23 da Bizz, que chegaria às bancas em junho de 1987, José Augusto Lemos não conseguiu entrevistar o vocalista Ian McCulloch por motivo de fadiga pós-show do cantor.
“Foi um dos melhores shows que assisti naquela época, porém mal conheci o Ian McCulloch. Tínhamos combinado de fazer a entrevista, mas quando cheguei no camarim depois do show, ele estava exausto e não conseguiu conversar comigo. A foto que tenho com ele é daqueles breves minutos dessa entrevista que não aconteceu”, lamenta José Augusto Lemos, apesar do registro fotográfico para a posteridade.
Amizade e entrevista com Renato Russo
Assistir a um dos shows do New Order na excêntrica companhia de Renato Russo, em posição privilegiada no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, passou longe de ser um encontro isolado entre José Augusto Lemos e o lendário vocalista da Legião Urbana, grande ícone do rock nacional do anos 80.
“Ele era muito próximo da Marcinha [Montserrat], vocalista da banda Chance, na qual eu tocava. Quando o Renato vinha para São Paulo, eles ficavam o tempo inteiro juntos, então o conheci através dela e acabamos ficando amigos. A gente se encontrava em vários eventos também”, conta José Augusto.
No início dos anos 90, devido à relação de confiança com Lemos, Renato Russo concedeu uma entrevista extensa e reveladora ao jornalista da Bizz. “Pela primeira vez, Renato assumiu publicamente que gostava de ‘meninos e meninas’, ou seja, que era bissexual. Foi uma coisa inédita, um furo de reportagem na época”, destaca Zé Augusto.
Algum tempo depois, em entrevista ao livro “Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80”, lançado em 2002 pelo jornalista Ricardo Alexandre, que viria a ser diretor da Bizz entre 2004 e 2007, Renato Russo foi questionado sobre o porquê resolveu expor sua orientação sexual naquela ocasião. “Ele respondeu que a Bizz era uma revista super legal, que não faria o mesmo sensacionalismo que Veja fez com Cazuza, além de considerar o repórter seu amigo. Eu fiquei super feliz quando li essa declaração do Renato no livro”, admite Lemos.
O “entrevistão” com Renato Russo saiu na edição nº 59 da Bizz, referente a junho de 1990, durante a megaturnê do arrebatador disco “As Quatro Estações”, lançado em 1989. Naquele período, inclusive, a Legião Urbana chegou a tocar na cidade de Campinas, em um histórico show realizado no dia 11 de outubro de 1990, no estádio Brinco de Ouro da Princesa, do Guarani Futebol Clube. Repare bem na data: exatamente seis anos antes da morte de Renato, vítima de complicações da Aids, aos 36 anos, no Rio de Janeiro.
“Renato Russo era uma pessoa muito afetiva e generosa, uma figura incrível como ser humano, além de um grande artista e poeta que ficou na história como o porta-voz de sua geração. Ele realmente colocou em palavras o que aquela geração viveu, sentiu e enfrentou de uma maneira muito rica e tocante. Tenho uma admiração muito grande por ele, gratidão por tê-lo conhecido pessoalmente e termos passado momentos divertidos juntos, além dele me considerar seu amigo. Faz muito falta”, resume José Augusto Lemos.
“Uma coisa que a Bizz não perdoava era quando o som de uma banda derivava de alguma outra que já existia nos Estados Unidos, na Inglaterra ou onde quer que fosse. Por isso, a maioria dos músicos nos detestava, mas o Renato Russo talvez fosse o único que gostasse da revista. Ele era nosso leitor e vinha conversar com a gente sobre as matérias, afinal o grande artista é o maior crítico de si mesmo, então não vai se incomodar com as críticas”, pontua José Augusto Lemos.
Por outro lado, o guitarrista da Legião Urbana, Dado Villa-Lobos, transparece certa mágoa em sua autobiografia, “Memórias de um Legionário” (2015), por causa de algumas opiniões de José Augusto Lemos publicadas na revista Bizz. “Ele lembra da minha crítica de uma maneira mais ressentida porque eu falava que a Legião tinha músicas muito parecidas com as dos Smiths”, comenta Lemos.
Por falar nisso, Lemos considera os Smiths como o último verdadeiro suspiro de novidade na história do rock. Conterrâneo do New Order, mas surgido dois anos depois, também em Manchester, o antigo grupo do vocalista Morrissey e do guitarrista Johnny Marr durou apenas cinco anos, entre 1982 e 1987, mas marcou época pela genialidade das letras e composições da dupla, sintetizadas no disco “The Queen Is Dead”, obra-prima lançada em 1986.
“No formato clássico de guitarra, baixo e bateria, é a última banda que considero interessante, incrível em todos os sentidos, que realmente me emocionou. Tudo o que veio depois não foram coisas musicalmente originais, inclusive o Nirvana, que era genial, mas trazia o punk hardcore americano. Depois disso, já faz uns 30 anos que há um domínio da música eletrônica”, analisa Lemos.
Uma viagem de volta ao glam rock britânico dos anos 70
Ao final de 1987, quando já trabalhava há cerca de dois anos e meio na revista Bizz, José Augusto Lemos teve a oportunidade de conhecer um de seus maiores ídolos de juventude, o conceituado músico e produtor britânico Brian Eno.
O marcante encontro, que desta vez não resultou de nenhuma grande turnê internacional, aconteceu na ocasião da cerimônia de inauguração da 19ª Bienal Internacional de São Paulo, tradicional exposição de artes realizada na capital paulista desde 1951. A edição com Brian Eno como convidado especial ocorreu entre os dias 2 de outubro e 13 de dezembro de 1987, no Parque Ibirapuera.
“Sempre admirei muito o Brian Eno e poder conhecê-lo pessoalmente foi muito legal. Depois da Bienal, ainda fomos jantar juntos”, relembra Lemos.
Protagonista do evento de abertura daquela Bienal, escolhido em função do conceito “música ambiente” presente em sua obra musical, capaz de transformar espaços físicos em sonoros, melhorando a relação dos indivíduos com o seu meio, Brian Eno integrou uma mesa-redonda sobre minimalismo, organizada pelo jornalista Jean-Yves de Neufville, amigo e colega de José Augusto Lemos na revista Bizz. Os dois, inclusive, sentaram-se à mesa para integrar a discussão junto a Brian Eno, que à época havia acabado de produzir o fantástico disco “The Joshua Tree”, do U2, lançado em março de 1987.
O painel “Brian Eno, Som/Imagem” também contou com a participação de outras importantes figuras da indústria da música como Lawrence Brennan, criador do selo Stiletto, representante no Brasil de gravadoras independentes, como a inglesa Factory Records, que lançou nada menos do que Joy Division e New Order.
Esse episódio envolvendo Brian Eno em São Paulo guarda uma conexão direta e afetiva com os tempos de adolescência de José Augusto Lemos. Isso porque, no início da década de 70, ele morou com a família durante três anos na Grã-Bretanha, onde testemunhou de perto o surgimento e o auge do movimento glam rock, também conhecido como glitter rock.
Fenômeno artístico e estético caracterizado pela libertação sexual, o glam rock promoveu mudanças no cenário musical e no comportamento dos jovens da época. Neste contexto, além da eclosão de grandes astros como David Bowie e Marc Bolan, aquele período também ficou marcado justamente pelo despontar de Brian Eno, responsável pelo visual andrógino e som inovador do grupo Roxy Music, onde formou uma rápida porém destacada parceria com o cantor Bryan Ferry, bem nos primórdios da banda, entre 1971 e 1973, operando os sintetizadores.
“Quando se é jornalista musical, às vezes surgem oportunidades de conhecer de perto seus ídolos, aquelas pessoas que, quando você começou a escutar música na adolescência, eram como se fossem deuses”, descreve José Augusto Lemos.
“Eu tinha 12 anos de idade quando a minha mãe, que é psicolinguista e professora universitária, ganhou uma bolsa para fazer doutorado em Edimburgo, capital da Escócia. Eu e minhas duas irmãs menores viajamos junto com ela e ficamos três anos na Europa”, relata José Augusto Lemos.
“A nossa chegada na Grã-Bretanha, em 1971, foi um fator de grande contraste, pois o Brasil estava no auge da ditadura militar, enquanto lá parecia um sonho, uma coisa maravilhosa em todos os sentidos, inclusive musical”, prossegue.
“O glam rock promoveu uma ruptura com o movimento hippie dos anos 60 e depois influenciou o punk e o pós-punk. Foi algo extremamente novo que o pessoal da minha idade abraçou de forma total, enriquecendo o período que passei lá”, explica Lemos.
“Eu já era louco por música desde os quatro ou cinco anos de idade, na época da Jovem Guarda e dos Beatles. Ouvia rádio, assistia programas de televisão e, aos 13 anos, já estava lendo todos os semanários ingleses”, conta José Augusto Lemos.
“Naquela época, havia três jornais semanais sobre música na Grã-Bretanha, cada um com 80 páginas e quantidade riquíssima de informação, algo incrível. Só lá mesmo havia essa obsessão para ter tantos leitores. Nas páginas finais, saíam notícias sobre turnês e isso era fundamental para se programar quando uma banda importante passasse pela cidade”, enfatiza.
“Infelizmente, perdi o show do David Bowie porque os ingressos se esgotaram. As pessoas dormiam na calçada da bilheteria. Esses shows eram maravilhosos porque eram em teatros, não em estádios, então a gente via os artistas de perto. Assisti a Roxy Music, Lou Reed e outras bandas, não apenas daquela geração glitter, mas também de folk e rock progressivo, pois sempre gostei de todo o tipo de música”, lembra José Augusto Lemos.
Em março deste ano, o Roxy Music anunciou o retorno aos palcos após mais de uma década em uma turnê comemorativa de 50 anos da banda, com a participação de todos os integrantes originais, menos Brian Eno. Os shows acontecerão entre setembro e outubro, na Inglaterra e na América do Norte.
“Quando voltei para o Brasil com 15 anos, eu já tinha uma educação cultural muito respeitável e uma visão abrangente sobre a história do rock por causa de todas essas leituras. Foi uma experiência muito rica que serviu como uma escola”, descreve José Augusto Lemos.
“Foi realmente uma experiência decisiva que moldou bastante a minha vida e que, profissionalmente, deu um empurrão muito forte para eu acabar me tornando jornalista musical no sentido mais amplo, pois acho a expressão ‘crítica musical’ meio antipática. Eu também fazia crítica, mas o jornalismo musical é muito maior do que isso, pois envolve pesquisa, reportagem e entrevista”, ilustra José Augusto Lemos.
Uma das irmãs de José Augusto, Anamaria Lemos posteriormente morou em Londres, capital da Inglaterra, e inclusive colaborou como correspondente internacional da revista Bizz entre 1987 e 1995.
Vida atual e legado da Bizz
Atualmente, aos 63 anos, José Augusto Lemos mora em Campinas, cidade pela qual nutre carinho especial, afinal onde estudou e começou a trilhar o caminho profissional, antes de se mudar para fazer seu nome em São Paulo. Além da Bizz, ele também editou e dirigiu outras revistas da Editora Abril, como SET, Viagem e Turismo, Superinteressante e Mundo Estranho.
“Foi um dos lugares que mais gostei de trabalhar, uma experiência muito interessante, pois já era um jornalista mais maduro”, aponta José Augusto Lemos, em referência ao tempo em que trabalhou na revista Superinteressante.
Hoje afastado da imprensa, ele trabalha exclusivamente como tradutor de livros de música. Um dos últimos que traduziu para português chama-se “Nossa Banda Podia Ser Sua Vida”, escrito pelo jornalista americano Michael Azerrad e publicado no Brasil em 2018 pela Editora Powerline, focada em música. “Está em todas as listas de melhores livros já escritos sobre rock”, recomenda.
Hoje em dia, ao olhar para trás, José Augusto Lemos se encanta com o tamanho do legado deixado pela revista Bizz, porém só se deu conta da real dimensão dessa influência ao se deparar com fóruns de discussão na internet, no início da era das redes sociais.
“Para mim, a Bizz já tinha ficado no passado, nem pensava mais nela, quando descobri uma comunidade de antigos leitores no Orkut. Eram milhares de pessoas discutindo e lembrando coisas que haviam sido escritas 20 anos antes, uma coisa incrível, então percebi que a revista havia tido um impacto muito forte e formado duas ou três gerações de adolescentes”, constatou.
“A Bizz foi desbravadora naquele deserto de informação da época”, resume.
“Foi muito gratificante reencontrar, ou melhor, conhecer esses leitores depois de vários anos e ver como realmente houve um impacto muito positivo na vida de tanta gente numa época em que não existia internet, a informação era difícil e os discos não saíam aqui no Brasil, diferentemente de hoje em dia, em que tudo se encontra on-line”, reflete.
“Após resistir bastante, entrei no Facebook em 2014 e descobri que havia três grupos sobre a Bizz com mais de sete mil pessoas, algo muito maior que a comunidade no Orkut. Foi uma coisa que realmente me surpreendeu e me impressionou muito. Resolvi me manifestar e fui recebido com muito carinho”, arremata José Augusto Lemos, com sentimento de orgulho pela jornada cumprida.
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