O país assiste ao caso Ana Hickmann, em que a celebridade denunciou a agressão sofrida pelo marido em ambiente doméstico, na vizinha cidade de Itu, da qual chamou a polícia, fez boletim de ocorrência e foi atendida com base na Lei Maria da Penha.
Nas Redes Sociais e na Mídia este assunto tem sido amplamente divulgado e debatido, por mulheres e homens também, quase todos em manifestação de apoio à ex-modelo e apresentadora de TV, por ter tido a coragem de denunciar o agressor e vir a público narrar sua história, o que tem sido visto como uma ação de utilidade pública, pois estimula outras mulheres a fazerem o mesmo.
No ano de 2023 comemorou-se, em 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher; em 10 de Outubro, o Dia Nacional da luta contra a violência à mulher; em 25 de Novembro, o Dia Internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, ao passo que as estatísticas mostram que aumentaram os casos de violência de gênero no Brasil (estupro; feminicídio), segundo dados recentes apresentados no Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Esta última data remete à história das irmãs Mirabal, assassinadas em seu país – República Dominicana, em 25 de Novembro de 1960 a mando do chefe da nação, o presidente Trujillo.
Também chamadas de “Las Mariposas”, as irmãs Minerva, Maria Teresa e Pátria Mirabal eram ativistas políticas contra a ditadura em seu país, sendo casadas, mães e cultas. Em emboscada, foram massacradas numa estrada rural, do qual os criminosos tentaram fazer parecer tratar-se de acidente automobilístico.
A tragédia culminou em revolta popular e o presidente foi destituído (mais de 30 anos no poder), pondo fim à ditadura. Há documentários e filmes sobre essa história de resistência e luta das irmãs dominicanas, como o “No tempo das borboletas”, com Salma Hayek.
No Brasil, o caso Ana Hickmann desencadeia uma reflexão coletiva de que a violência contra a mulher acontece em todas as classes sociais, etnias, grau de escolaridade, religião, etc. Muitas
mulheres deixam de denunciar e enfrentar a violência sofrida (física, sexual, psicológica, patrimonial, etc.) por dependência econômica ou emocional do parceiro, o que traz consequências também para os filhos.
Em vários casos, quando a mulher tem a iniciativa para denunciar, passa a ser desencorajada pela família e/ou amigos, persuadida a ter paciência e compreensão.
Quando o faz, pode ser chamada de desequilibrada, ingrata, interesseira e muitos outros adjetivos que tentam desmoralizá-la, isolá-la e assim ficar desacreditada, para que a imagem do homem permaneça preservada em sua moral.
O que está por trás deste fenômeno é a cultura patriarcal e machista que coloca a mulher numa categoria de inferioridade e menos valor que o homem, de forma explícita ou velada. Isso se reflete nas diferenças salariais, na pouca ocupação em cargos elevados da política, do judiciário, de chefia, das organizações e instituições.
Numa sociedade que em sua cultura hiperpotencializa sexualmente o homem e reprime sexualmente a mulher, mantêm-se os ideais de objetificação do corpo da mulher como fonte de prazer, sem que esse sujeito-mulher seja visto também em seu direito ao prazer e às decisões
sobre seu próprio corpo.
Assim, mulheres não podem caminhar sozinhas pelas ruas a qualquer hora e lugar sob o risco de serem estupradas, e sofrem abusos dentro do transporte público. Mulheres são assediadas na família, no trabalho, no consultório médico, na igreja, etc.
Essa cultura patriarcal e machista também responde pelas manifestações de homofobia, transfobia e outras discriminações contra os sujeitos que não correspondem aos padrões tradicionais rígidos acerca dos papéis de gênero, ligados à masculinidade e à feminilidade.
O ser “ativo” e o ser “passivo”, o ser “forte” e o ser “sensível” dividem os sujeitos através de relações de domínio, hierarquia, liberdade para uns, vulnerabilidade para outros, atravessados pela violência quando não há a submissão, ou quando se confronta ou se subverte esses papéis.
O caso Ana Hickmann e os casos diários de mulheres “desconhecidas” nos fazem pensar que precisamos de letramento de gênero e de leis que regulamentem o combate ao machismo como conteúdo do currículo escolar, como ocorre, na Educação, com a política que educa contra o racismo.
Em nossa sociedade, o patriarcado machista persiste como uma forma de servidão de gênero permeada por violências que tem deixado filhos órfãos, mulheres com medo e homens perdidos na manutenção de um padrão cultural reconhecido há tempos como arcaico, primitivo e insustentável.
Eliana Nunes da Silva, pedagoga, é doutora em Educação pela Unicamp e supervisora educacional na Secretaria Municipal de Educação de Campinas – [email protected]