Pela segunda vez, um oficial de justiça bateu à porta de Jéssica que tem 33 anos, mora com a sua mãe, separou-se recentemente e tem dois filhos de 7 e 9 anos. O objetivo da “justiça”, por assim dizer, foi executar o pagamento de parte da dívida que a professora contraiu para financiar seus estudos. Jéssica precisou deixar de pagar as mensalidades do acordo que tinha com a faculdade logo após seu ex-marido ter ido trabalhar em outro estado e ter parado de pagar a pensão de seus filhos.
Naquele dia, o oficial encontrou a professora em casa e levou seu carro. Apesar de ainda não saber como iria fazer para levar seus filhos à escola e ir trabalhar no distante bairro no dia seguinte, não teve tempo para drama e começou a se mobilizar para resolver a situação.
Com muito esforço, Jéssica concluiu o curso de Pedagogia em uma faculdade privada. Ela foi a primeira integrante de sua família a chegar ao ensino superior e possuir carteira assinada. Tem sido inúmeras as tentativas para ingressar em um concurso público em alguma cidade da região.
A cada concurso, ela se aproxima um pouco mais de seu sonho. No último, foi classificada e se apega a perspectiva de que será chamada. Atualmente, ela trabalha em uma dessas creches da parceria público privado na cidade de Campinas.
Para ampliar o número de vagas na educação infantil em creches, a prefeitura tem firmado convênios com Organizações da Sociedade Civil. Em um primeiro momento, podemos achar a iniciativa adequada. Aliás, uma das metas dessa gestão é zerar a fila em creches com a criação de novas unidades nesse modelo público-privado. Intenção mais que louvável e necessária.
O Programa Espaço do Amanhã, tão anunciado, prevê a construção de 16 creches em cinco regiões de Campinas, escolhidas conforme a alta demanda de vagas. Com isso, o número de vagas na educação infantil municipal ampliará em 5 mil. Atualmente, cerca de 3.973 crianças, com idade entre 0 a 3 anos, aguardam vaga na rede municipal de ensino.
No entanto, precisamos nos atentar ao fato de que hoje que as condições de atuação desses profissionais, que estão nas parcerias público-privado, são muito difíceis. Por exemplo, uma professora, em início de carreira, que ingressa via concurso público na Rede Municipal de Campinas tem um provimento mensal de mais ou menos R$ 5.400 para atuar 32 horas semanais na Educação Infantil, além de um vale alimentação de R$ 1.570. Para uma cidade como Campinas, esse é um salário apenas razoável para o sustento de uma família que, certamente, viverá com algumas restrições em uma metrópole com o custo elevado como a nossa.
Como se isso já não fosse o bastante para a não atratividade da carreira docente em uma grande cidade, o fato é que para fazer um serviço muito semelhante em uma estrutura muito parecida, uma professora que atua nas creches do programa Bem Querer da prefeitura, recebe cerca de R$ 2.500 para uma jornada de 25 horas de trabalho semanais. Em razão das políticas das instituições, muitos profissionais não dobram período. Jéssica, chefe de sua família, com esse salário tem sustentado sua mãe e dois filhos.
Apesar de inúmeros estudos pontuais, há poucos dados abrangentes, pesquisas do tipo estado da arte ou meta-analíticos no Brasil que discorram sobre as condições dessas profissionais que atuam no setor da educação nas parcerias público-privado. Aqui, focou-se apenas na questão salarial, mas há diversos pontos a serem levantados, como as horas dedicadas ao planejamento pedagógica.
Nota-se uma certa tendência velada de que uma vez essas parcerias não devam existir de acordo com algumas correntes de pensamento das políticas públicas em educação, logo, não são contextos interessantes de investigação. Ora, estamos falando de profissionais que possuem condições precárias e merecem visibilidade.
Trabalhando como professora em cursos de Pedagogia, conheci muitas histórias parecidas com as de Jéssica. Histórias que se movimentam adiante, ao mesmo tempo, que reproduzem aspectos do passado.
Assim como sua mãe a criou sozinha, ela também está criando os filhos sozinha. Lembro-me que em uma segunda-feira, após o domingo de dia dos pais, perguntei para um grupo de cinquenta mulheres, quantas havia parabenizado suas mães. Para minha surpresa, soube que uma parte significativa daquelas alunas, arriscaria dizer que quase a metade, foram criadas somente por suas mães.
Hoje, eu sei que uma parte considerável dessas alunas que estão formadas, atua nessas parcerias público-privado. Não se trata de tentar ser a portadora de suas vozes, elas já dominam a resiliência. Mas as circunstâncias precisam de mais visibilidade.
Afinal, não é de hoje que há uma categoria profissional silenciada exercendo um trabalho de modo semelhante a outra categoria, servindo no final das contas ao mesmo patrão. Não se trata de desvalorizar uma em detrimento da outra, mas precisamos ficar atentos ao movimento que se instaura. Educação de qualidade requer investimentos.
Profissionais da educação merecem nosso apoio e respeito. Sim, também precisamos falar um pouco mais de compromisso ético com a profissão. Para isso, esperamos que sejam dadas condições equitativas para a atuação docente em nossa cidade.
Vanessa Crecci é professora e doutora em Educação pela Unicamp ([email protected])