Neste despertar de um novo milênio, as conquistas culturais do Homem, com toda a sofisticação nas áreas da tecnologia, da cibernética e da imagética rende um tributo ao avanço de nossa inteligência. A adoção de novos comportamentos adequados às condições de um novo tempo não deve estar, entretanto, associada ao abandono de práticas socioculturais importantes, que há milênios sobrevivem nas sociedades humanas, de forma bastante similar, pois que são responsáveis pelo desenvolvimento de aptidões bio – fisio – psico – motor – sociais da espécie Homo Sapiens sapiens para a vida em sociedade de forma harmônica, produtiva, integrada e permanente.
É muito comum lançarmos um olhar sobre o momento presente e tentarmos compreendê-lo somente a partir das variáveis econômico-político-sociais e de alguns aportes psicológicos. Dificilmente, é incluirmos em nossas análises a perspectiva evolucionária dessa espécie e o papel que comportamentos consolidados, há inúmeras gerações, representam para a continuação da vida social com qualidade.
Sabe-se que, através da educação formal realizada na escola, os indivíduos têm contato com recortes específicos da cultura de sua sociedade, mas não com ela em sua totalidade. O restante das informações eles as recebem, informalmente, através do espaço familiar, dos grupos de amizade, das atividades artísticas, esportivas e, principalmente, através das brincadeiras livres e espontâneas na infância, em coletividade.
Tem sido raro deitar-se o olhar sobre o conjunto dos fazeres da criança em seus vários estágios de desenvolvimento, no interior da casa ou fora dela, como uma cultura.
Brincar de forma livre e coletiva, cantando, pulando e construindo brinquedos em nossos tenros anos, foi solução inteligente que a humanidade criou, em sua caminhada milenar, para favorecer o desenvolvimento pleno das funções relacionadas à vida biológica, social e emocional de seus indivíduos e coletividades.
É um processo de educação não formal comum a todos os povos da Terra e significa criar, exercer a capacidade inventiva e transformadora essencial à sobrevivência, desenvolver habilidades, conhecendo o mundo e a si mesmo. Constitui – se, principalmente, numa experiência antecipada da vida adulta, em patamar mágico muitas vezes, onde as respostas dadas pelos infantes às múltiplas situações vivenciadas são retidas em arquivos da memória orgânica, os quais serão naturalmente acessados quando de sua necessidade no futuro. Representa armazenar alegria, aprender a superar obstáculos, respeitar regras, fortalecer laços comunitários, dominar o medo e a ansiedade.
Nos dias de hoje, já são detectados os efeitos deletérios de uma sociedade que expulsou a criança da rua – por excelência, o espaço de socialização dos sujeitos. Impedindo-a de conviver com os iguais e os diferentes, condição “sine qua non” para o desenvolvimento do espírito crítico, da tolerância, da afetividade, do respeito ao próximo e às regras do jogo social, nega-lhe o direito a uma vida plena.
Em substituição apresenta-lhe os esportes em clubes, as intermináveis horas na TV, os videogames e o computador os quais, se cumprem o papel de entretenimento e desenvolvimento cognitivo, também estimulam a competitividade, a violência, o individualismo e a precocidade.
E, como se não bastassem os problemas de ordem psíquica e social, o desenvolvimento biofísico dos pequenos vem sendo prejudicado, fazendo com que problemas típicos de idosos – joelho, coluna e outros de fala sejam frequentes em consultórios de pediatras.
A dificuldade em manter laços afetivos, também, já foi observada por psicanalistas que trabalham com jovens, e a alienação relativamente às questões de ordem política, salvo raras exceções, é a tônica.
Suponho não ser exagero dizer que a solidão tomou conta da criança, assim como da humanidade. Coexistimos num mesmo espaço, porém não convivemos mais!
Tenho como certo que a valorização da lúdica infantil deva ser o primeiro passo para nos percebermos como seres criadores, ganharmos autoestima, condição básica para o exercício da cidadania plena. A preservação de um patrimônio mundial de tal magnitude precisa estar na agenda do poder público, em todos os níveis, mesmo que se tenha de enfrentar inúmeros desafios.
Comemorar o “DIA DA CRIANÇA” sem lhe garantir o direito de exercer sua criatividade natural de forma espontânea e livre é brincar de “faz de conta”!
Regina Márcia Moura Tavares é antropóloga, especialista em Preservação do Patrimônio Cultural, Conselheira do Condephaat e Condepacc e autora do livro Brinquedos e Brincadeiras: Patrimônio Cultural da Humanidade, Pontes Editora, Campinas, 2004, 2 vols.
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