Estamos iniciando novo ano. O calendário indica: 2024. Quase metade da terceira década do terceiro milênio – um quarto do século 21 já se finaliza…
Revisemos um pouco da História. Há dois mil anos atrás, o Império Romano dominava o mundo. Começou cerca de um quarto de século antes de Cristo e assim permaneceu até faltar um quarto de século para fechar o século 5. Foram 500 anos de dominação, implicando o lado ocidental, comandado por Roma, e o oriental, sob o controle de Constantinopla.
Os doze deuses romanos, antes mesmo do Império se caracterizar, eram idolatrados pela maioria da população. Quatro eram os principais: Júpiter, o maior deles, e Apolo, Vênus e Marte.
O politeísmo era a regra religiosa para os povos em geral. A mitologia romana, como as de outras populações, destacava as glórias dos deuses e também mitificava algumas personagens heroicas. Horácio Cocles e Júlio Cesar, na Roma Antiga, antes de Cristo, foram alguns desses.
Muitas vezes, as lendas dos deuses eram misturadas com as biografias dos heróis.
O exemplo de Horácio Cocles é emblemático. Oficial militar romano do século 6 a.C. passou a ser chamado de herói. Segundo a lenda, ele sozinho teria defendido a ponte que dava acesso a Roma, impedindo que a região fosse tomada pelos etruscos.
Diziam que Júlio César, nascido um século antes de Cristo, seria descendente de Iulus, um dos filhos de Enéias, o nobre troiano com pai mortal e mãe divina – ninguém menos que Vênus… Temos, até o momento nosso – início de 2024 – pouco mais de mil e quinhentos anos desde a queda do Império Romano.
Poderíamos imaginar que o Homo Sapiens da atualidade teria bons e sinceros recursos para não mais misturar ficção e realidade.
Afinal, evoluímos muito. Fazemos viagens aéreas, conversamos com pessoas distantes através de imagens e sons sofisticados, escolhemos entre uma entrevista presencial ou virtual, temos robôs trabalhando para nós (e concorrendo conosco…), inteligência artificial, automóveis sem motoristas etc.
Tal carga evolutiva deveria permitir que estivéssemos muito bem definidos entre a ilusão e a certeza. Estariam claramente nítidos e distinguidos nas nossas cabeças o conjunto ficcional e o contexto real.
Consequentemente, teríamos bem caracterizados os ideais e os limites entre o incomensurável divino e o cósmico humano.
Caberia, então, nesta atualidade, no mundo ocidental, de enorme maioria monoteísta, alguém ser colocado em pedestal sagrado, além do próprio Deus?
O escritor e mitólogo romeno Mircea Eliade aponta que uma pedra sagrada não deixa de ser uma pedra; do ponto de vista profano, nada a distingue das demais pedras. No entanto, para aqueles que a concebem sagrada, de imediato ela transmuda-se em realidade sobrenatural. Assim, com muita facilidade, os fãs vão endeusando seus venerados e promovendo a interação ídolo – idólatra.
De seu lado, o ídolo acomoda-se, permite que alimentem sua vaidade, recebe as massagens de ego, nutre o narcisismo, deixa-se levar ao pedestal, aceita a deificação e assim tenta permanecer.
No outro polo, o idólatra esforça-se por enaltecer o ídolo constante e sistematicamente, negando as falhas e divulgando as supostas virtudes dele.
No fundo, o idólatra sabe que o ídolo não é divino, que é humano e falível, bem como, se questionado mais seriamente, o ídolo também reconheceria suas dimensões humanas, mas reiteradamente os dois lados se convencem da fabulação.
Curiosa e contraditoriamente, os humanos pleiteiam uma enorme gama de recursos não divinos para serem deuses.
Nesse empenho para conseguirem a semelhança com um deus, para se sentirem “divinoides”, digamos, os ídolos tentam se preencher do quê? Vemos e revemos a busca insistente de riqueza material, posses, expansionismo territorial, apartamentos de cobertura, palacetes, acúmulo de dinheiro e semelhantes – tudo o que dificilmente representaria valores divinos significativos.
Aliás, a rigor, nenhum ser humano sabe verdadeiramente quais são os equipamentos (ou mesmo se existem) de um deus.
O idólatra, por seu ângulo, envolve-se nessa neurose de cultuar o ídolo porque, no mais íntimo e profundo nível da sua alma, o que ele quer é exatamente a mesma coisa: ser endeusado e adorado…
Seria bem mais útil, prático, sadio e construtivo se cada um de nós tentasse se aprimorar apenas física e espiritualmente, aprendendo cada vez mais e melhor a viver e, principalmente, a amar como verdadeiros seres humanos.
E talvez sofisticar a vida com alguns trabalhos de arte que podem ser mesmo percebidos e admirados como divinos…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor