Julieta Hernández Martínez foi uma mulher artista, migrante vinda da Venezuela, que escolheu viver no Brasil de forma itinerante, percorrendo o país de bicicleta para levar sua arte como palhaça e semear alegria para um público popular e infantil nos recônditos desse país.
Anônima para quase todos nós, fomos dilacerados com a notícia de sua morte: ao tentar regressar para seu país e reencontrar sua mãe no Natal, pernoitou numa cidade no Amazonas em uma pousada rudimentar e improvisada, tendo pago dez reais para dormir numa rede na varanda, sendo a única hóspede, quando foi brutalmente violentada e assassinada por um casal que lá vivia de favor.
Por que morreu Julieta? (se pronuncia Rulieta, em espanhol). Porque era uma jovem mulher livre. Porque escolheu viver sem medo, como artista, estrangeira, independente, nômade, artesã, palhaça e cicloativista, adepta da simplicidade como modo de vida.
Julieta viveu apenas trinta e oito anos. Numa sociedade como a nossa, de base cultural patriarcal e machista, quais as chances Julieta tinha de viver sem correr riscos e ter um fim trágico?
Sabemos que nessa cultura as relações de gênero são desiguais e prevalece uma relação de poder inclusive sobre os corpos: tal cultura sempre autorizou a violência do homem contra a mulher, sendo recentes as leis de proteção.
No existir social, para o homem está o alcance da liberdade e do prazer. Para a mulher ainda se alimenta a necessidade de proteção e dependência do homem para sentir-se segura. Essa foi uma construção social e cultural que não podemos mais aceitar, e é responsabilidade do Estado todas as formas de manutenção da desigualdade e ausências de políticas públicas no combate à violência. Por isso mesmo que Julieta não teve o direito de viver no Brasil, porque teve seus direitos violados.
Foi devastador acompanhar a reportagem sobre o assassinato da palhaça Juju, numa noite de terror e dor na qual ela, como vítima, lutou com seus algozes e muito sofreu: foi atacada enquanto dormia na rede, teve o celular e a bicicleta roubados, foi estuprada, enforcada por golpes de “gravata”, teve o corpo incendiado por álcool, tendo sido enterrada talvez ainda viva.
Essa venezuelana que buscou refúgio e moradia no Brasil era doce, inteligente, cativante, criativa e cheia de amigos. Mas era apenas uma mulher, encurralada e sem direito à vida, à liberdade, sem direito de ir e vir, sem direito à segurança ao fazer suas próprias escolhas sobre em que trabalhar, onde morar, como se deslocar sem ser brutalmente atacada pela vilania de depauperados, enquanto buscava a sobrevivência, os laços e o afeto materno.
Julieta agora se transforma em símbolo de liberdade enquanto mulher. Ela tentou a liberdade e a alcançou enquanto viveu, com muita coragem, coerente com a sua arte clown que espalhou entusiasmo, coerente com a sua performance no estilo mambembe e enquanto voava em sua bicicleta.
Julieta só não imaginava que, ao fugir do caos econômico de seu país, viria a se instalar num país vizinho que, mesmo sendo acolhedor é um dos que tem os mais altos índices de feminicídio no mundo.
Choremos pela palhaça Julieta, que agora voou para o céu.
Eliana Nunes da Silva, pedagoga, é doutora em Educação pela Unicamp e supervisora educacional na Secretaria Municipal de Educação de Campinas.