É muito agradável usufruir de lugares reservados, driblando filas, disputa por vagas, sublimando concorrências.
Que maravilha estacionar nos melhores lugares dos supermercados, farmácias e shoppings.
Também é ótimo dispor de uma reserva no restaurante em dia festivo, naquele domingo em que a cidade está cheia, que poucos viajaram…
Os favorecidos pelas reservas curtirão o privilégio. Os outros aguentarão as restrições ou competições.
Um bolsista consegue estudar junto aos colegas pagantes. Se a bolsa decorreu de mérito classificatório, um vestibular honestamente disputado, ele pode ser mais respeitado, ainda que fatalmente enfrentará inveja. Se foi beneficente, o risco de ser alvo de bullying será enorme.
Todos ansiamos pelas exceções e seleções que nos distinguem e destacam. E nem sempre reagimos com tolerância e bom senso às frustrações de permanecer comuns.
Viajamos naquele mesmo voo sem escalas: a primeira classe, a executiva e a econômica. Vamos chegar ao mesmo destino, à mesma hora. Se houver uma grande desgraça, todos morreremos juntos, mas os das reservas mais caras sentir-se-ão em conforto especial, com a ilusão de segurança garantida…
Um barco clandestino de refugiados também promete alguma condição especial para aquele que paga mais. Pode conduzir trinta pessoas apertadíssimas e dispor apenas de vinte boias de flutuação, as adequadas para a lotação segura. Em caso de acidente, alguns que investiram mais podem ficar sem boia…
As reservas mais comuns têm compromisso financeiro, elas podem desprezar valores ideológicos, filosóficos e de qualquer ordem. Um ditador africano será hospedado no mesmo andar especial que aquele hotel dedica a um monarca ou governante ariano ou asiático.
Nos rótulos dos melhores vinhos, temos explicitamente um registro carimbado: “Reserva”, quando a bebida é mais complexa, envelhecida por mais tempo nos locais devidos. Alguns enólogos brasileiros criticam as vinícolas chilenas que estampam em suas garrafas: “Reservado”, sugerindo vinho intermediário entre o verdadeiro “reserva” e um comum, o que seria embromação…
A ansiedade por espaços afetivos implica a perspectiva de qualquer um de nós. Precisamos de um lugar no coração da mamãe, do papai, dos parentes, da pessoa amada, dos amigos, dos compadres, dos colegas.
A garantia de uma reserva amorosa é a mais importante e definitiva da vida. Mesmo sem dinheiro para demandar espaços privilegiados, a pessoa que se sente bem amada tem latência afetiva para amar mais e melhor. E, por isso mesmo, aguentar problemas, dificuldades e limitações que uma vida mais restrita ou frustrante lhe determina.
A vida da maioria da população mundial é mais difícil, há poucas reservas para ela. Apenas uma minoria pode exercer as sofisticações.
Dessa maioria excluída do mundo das reservas, muitos se consolam com a possibilidade de alcançar um lugar no Paraíso, depois da morte.
As religiões exploram essa perspectiva, oferecendo amor incondicional do Criador, sugerindo que o prosélito deve se conduzir como criatura grata, um filho obediente, aumentando assim as chances de chegar ao Céu.
Na maior religião ocidental, o catolicismo, há muitas biografias mostrando o caminho sacrificado dos santos. Nessas hagiografias, os protagonistas renunciam a muitas coisas, evitam quaisquer privilégios, oferecem muitos esforços para alcançar a santidade. Isso lhes garantiria uma reserva ao lado de Deus.
Essa demanda, na verdade, não é garantia de nada, pois a justiça divina não tem critérios humanos.
Eça de Queirós ironiza muito bem esse panorama. Em conto interessante, cria o personagem frei Genebro, cuja história muito se assemelha à de São Francisco de Assis, o que o qualificaria para ganhar o Céu. No entanto, em uma ocasião esdrúxula, ele mata um porco para alimentar um amigo doente. E o autor assim fecha o texto: “O animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!… Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro”.
No limite humano, à medida que evoluímos espiritualmente, as reservas podem ser democratizadas. Para isso, necessitamos aprimorar o amor e a ética. São eles nosso sentimento e nossa virtude mais nobres e importantes.
Conhecemos, sentimos, vivemos o amor na teoria, na fantasia, mas, na prática, sabemos que amamos pouco e mal.
A ética também é pouco e mal praticada. E, na teoria, não é conhecida, sendo frequentemente confundida com a moral.
Juahrez Alves, produtor cultural e filósofo brasileiro, diz que ser ético não é obedecer leis e normas, mas fazer o que é certo sem imposição de ninguém.
Se você escolhe livremente seu caminho, inspirado na ética e no amor, as reservas farão parte da sua vida, mas serão menos importantes e decisivas.
Veja o recado de Sêneca, ensinando a viver desde o antigo Império Romano: “A liberdade é o prêmio que buscamos. Significa não ser servo de coisa alguma – de nenhuma compulsão e de nenhum acaso dos fatos. Significa reduzir o poder da Fortuna a um campo de combate igualitário”…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.