Veio agora conversar comigo um ex-paciente do final dos anos 1990. Na época, moço bem-sucedido, com quase 40 anos, oriundo de família conservadora, guiada pelo moralismo cristão, ele veio à psicoterapia porque vivia um conflito bissexual. Era casado com uma mulher há uma década, tinha 2 filhos em idade pré-escolar e pensava, cheio de dúvidas, incertezas e sofrimento, em se separar para assumir uma relação homoerótica.
Ele vivia o casamento sem dificuldades importantes, gostava da esposa, admirava o trabalho e o comportamento dela em todas as jornadas femininas, no ofício externo e na administração doméstica. O casal tinha relações sexuais em baixa frequência, mas de boa qualidade.
Quando o arroubo homossexual tomava conta, ele se entusiasmava em gritar sua orientação erótica aos quatro ventos, queria arrombar a porta do armário.
Quando o apego à esposa e filhos inundava sua alma, ele queria se trancar mais fortemente, guarnecer a porta com fechaduras indevassáveis. Suas iniciativas homossexuais eram aventuras convenientemente bimestrais. Procurava um cinema pornô em São Paulo, onde arrumava um parceiro. Ele evitava o contato mais íntimo, especialmente a penetração anal, pois a Aids era o mal da época. Queria sempre estar no controle da situação. Então, pagava para o parceiro e o masturbava ali mesmo na sala de projeção ou o conduzia para o banheiro.
Preconceituoso, homofóbico, indignado com a própria homossexualidade, impregnado pelo conservadorismo moral, considerava-se um grande pecador, um “veado maldito”.
Na sua igreja, via que muita gente só se dispunha a fazer uma terapia se o terapeuta fosse da mesma crença. Tratar-se com crente ou com um homossexual poderia induzir o resultado da sua busca. Ele vivenciava também intensa ansiedade homocompetitiva. Todo homem sofre de anseios e dúvidas nas comparações entre congêneres. Observam-se e cogitam-se sobre a prosperidade financeira, o sucesso com as mulheres, o carro mais novo e mais potente, o tamanho do pênis. É a homorrivalidade masculina.
Muitos bissexuais e homossexuais, apesar de todas as revoluções socioculturais que continuam se processando no mundo, ainda se caracterizam como homens menores, efeminados, mais fracos. O conflito homorrival pode ser muitas vezes predominante sobre a homoatração.
Meu paciente considerava-se feio, com pouca musculatura, inseguro com meninas que julgava muito bonitas e muito à vontade diante do parceiro homossexual que fosse dominado.
Havia começado uma relação diferente, com mais inspiração afetiva, achando-se apaixonado pelo novo parceiro. Isso o estimulava a sair do armário. A revelação da homossexualidade parecia uma decisão irreparável, sem volta.
Muitos bissexuais anulam a vida heterossexual quando saem do armário, como se entrassem em um compromisso sindical, envolvendo-se em militância pela “causa”. Ao longo da terapia, ele percebeu que o contexto homorrival era muito mais importante do que a sua vocação homoerótica. E que sair do armário não castraria sua heterossexualidade.
Permaneceu casado e aliviou a censura moralista sobre a homossexualidade. Ele vem hoje me agradecer, comemorando o nascimento de um neto.
Comentamos que em quase três décadas de movimentos revolucionários da sexualidade humana, ele poderia ter um neto mesmo que tivesse deixado o armário. E que, se ele quisesse hoje revelar o lado homossexual, seria bem mais fácil, com tantas tolerâncias, inclusões e ações afirmativas. No mundo atual, o cara não tem que sair do armário, a porta está aberta.
No entanto, o que ele comemora foi a boa decisão da época, quando pôde escolher de modo mais livre e desobrigado. E que permitiu manter a família e hoje festejar o neto ao lado da esposa, ela e ele, avós muito felizes.
Joaquim Zailton Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor