No livro “Freakonomics” (equivalente a “Economias Aberrantes”), há instigações que nos exigem reflexões diligentes. Os autores, o economista Steven D. Levitt e o jornalista Stephen J. Dubner, fazem a mais provocativa indagação quando dizem: “a trapaça é um ato econômico primordial dos seres humanos, pois queremos obter mais gastando menos”.
A sedução pelos ganhos e vantagens realmente é muito poderosa, envolvente, abrangendo até pessoas que deveriam ser modelos de modéstia.
As religiões indicam que dinheiro e posses materiais não são primordiais na vida terrena. Entretanto, a maioria dos líderes religiosos dispõe de luxo e conforto extraordinários. Os cardeais católicos e os bispos evangélicos vivem em palacetes, mansões suntuosas, com mordomias e serviços especiais.
O próprio Cristo pediu essa humildade. Em versículo de Lucas (16:13), há referência a Deus e a Mamom (palavra hebraica que corresponde a “riqueza”, sem caracterizar uma divindade): “Nenhum servo pode servir a dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom”.
Imaginemos uma tribo antiga qualquer, homens primitivos que caçavam um animal para comer. Matavam uma vaca e compartilhavam a carne.
Por que será que alguns mais “espertos”, talvez os líderes, os “machos-alfa”, começaram a distribuir as diversas partes do animal de forma diferenciada? Ou seja, que critérios definiam que as mais macias e saborosas iam para os chefes, a minoria importante, e as menos “nobres” para a maioria irrelevante?
Por que não teria havido uma alma com espírito democrático e índole heroica que dissesse: – “Ao invés de matar um único animal e distribuir sua carne conforme essa hierarquia, vamos criar muitos e muitos bovinos, ter bastante à nossa disposição, e todos comeremos os filés”!
Um vendedor esperto pode se vangloriar da capacidade de vender carro ruim por preço alto, dando ao comprador a impressão de que pagou pouco por um ótimo veículo.
O perfil do negociante malicioso e velhaco se reforça cada vez que um contrato vantajoso para o lado dele é assinado. O mercado permite essa tendência parcial, mesmo que a outra parte seja prejudicada. Em nome da “lei da oferta e da procura”, por exemplo, muitas circunstâncias desonestas são toleradas e até aplaudidas.
Observamos artimanhas estapafúrdias bem como boas e justas trocas. Muitas vezes, a diferença é sutil. Essa sutileza poderia definir um bom negócio ou uma armação extremamente criminosa.
Somos todos vulneráveis ao engodo promovido pelo outro como também sempre nos capacitamos para trapacear.
À medida que não nos iludamos, que saibamos que nos preparamos para trapacear muito, podemos trapacear menos.
Um grande estrago, nesta terceira década do século 21, é que salta à vista perigosamente um valor lastimável: parece que quem melhor trapaceia e mais corrompe se dá melhor na vida.
Os líderes, as “celebridades” e os privilegiados que comem os filés estão em muitos nichos. Da política ao esporte, da religião à arte, da ciência exata à filosofia, do empreendimento à estabilidade de um emprego, no amor e no sexo.
Tais regalias vão envolvendo as pessoas, de maneira a estimular cada uma delas para copiar essa trajetória.
E aí surge uma contradição pesada, complexa e desafiadora. À medida que o sujeito pretende atingir os mais altos níveis supostamente humanos, vai assemelhando-se a um deus. Essa onipotência o desvia do sucesso dos homens e demanda um perverso exercício divino!
Seguindo na pretensão do poder divino, e para permanecer muito poderoso, ele vai se tornando cada vez mais desumano, malvado e cruel.
O déspota político, o chefe arbitrário, o patriarca arrogante e similares sentem-se completos e absolutos, esquecendo-se de que são humanos. No entanto, irão vacilar, adoecer e morrer como qualquer humano. Às vezes, até de modo terrivelmente desumano.
O ser humano que se empenha por ser cada vez mais humano tem a consciência ética de que pode trapacear a qualquer momento. E aprimora as interações justas e virtuosas à medida que percebe que os níveis divinos são mesmo apenas e tão somente para deuses.
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.