Juliana é professora da Educação Infantil na cidade de Campinas, em uma creche cogerida. É a primeira pessoa da sua família a concluir o ensino superior. Formou-se em Pedagogia no ensino à distância. Desde que iniciou o curso, começou a trabalhar na creche onde atua até hoje. Ingressou como auxiliar de educação e, hoje, ocupa o cargo de professora titular de turma. Seu percurso foi construído no chão da escola, no cotidiano com as crianças, nas conversas com as famílias e nos enfrentamentos diários que atravessam quem vive esse contexto.
Nunca ninguém havia lhe dito que sua prática merecia ser sistematizada, registrada e compartilhada.
O convite para escrever partiu da sua supervisora pedagógica, que, ao reconhecer a competência de Juliana, sugeriu que ela transformasse em texto um pouco daquilo que produz diariamente no exercício da docência. A insegurança, claro, apareceu. Juliana, como tantas outras professoras, carrega dificuldades que não são individuais, mas fruto de uma formação precarizada e de um sistema que, historicamente, não estimula mulheres da classe trabalhadora a se verem como produtoras de conhecimento. Se enrola com a crase, tropeça na conjugação verbal e, às vezes, se atrapalha com a concordância. Mas, quando se trata do trabalho com as crianças, não tem dúvida: sabe quando intervir, quando se retirar, quando observar, quando propor, quando silenciar e, sobretudo, quando deixar que as crianças conduzam suas próprias descobertas.
Não faz muito tempo, durante uma formação, ouviu pela primeira vez a expressão “olhar antropológico para a criança”. Juliana, curiosa, foi investigar o que era esse tal de olhar antropológico. E descobriu que, na prática, já fazia isso há muito tempo, mesmo sem nomear dessa forma. Afinal, seu trabalho sempre esteve ancorado na escuta, na observação atenta, no entendimento de que cada criança carrega uma história, uma cultura, um território e uma série de atravessamentos que precisam ser considerados na prática pedagógica.
Foi então, mobilizada pela sugestão da supervisora, que decidiu enfrentar o desafio de transformar sua prática em texto. E, no meio desse processo, conheceu a Inteligência Artificial. Sem saber exatamente onde isso daria, resolveu testar. A IA entrou como apoio: ajudou na organização das ideias, na sugestão de estruturas textuais, na busca por palavras que dessem conta de nomear aquilo que Juliana sabia na prática, mas não estava habituada a escrever. E, assim, ela produziu um relato coeso, coerente e, principalmente, honesto sobre o que significa ser professora da Educação Infantil numa escola cogerida.
E aqui surge a pergunta que parece incomodar muita gente: quem tem medo da IA? Porque, sejamos claros, não é a Juliana quem tem medo. Ela não teme uma ferramenta que apenas apoiou na organização daquilo que ela já sabia. Quem tem medo, geralmente, é quem sempre controlou a palavra. Quem, historicamente, transformou a escrita formal, a norma culta e os ritos acadêmicos em instrumento de poder, distinção e exclusão.
A IA não inventa prática, não cria saber pedagógico e não substitui aquilo que é produzido no chão da escola. Mas ela escancara um desconforto social: e se mais pessoas, como Juliana, começarem a escrever? E se mais professoras, mais auxiliares, mais profissionais da educação entenderem que são, sim, legítimas produtoras de conhecimento? O problema, portanto, não é a IA. O problema é o abalo no monopólio histórico da escrita e da produção de discurso.
E sejamos rigorosos: a IA não resolve as desigualdades educacionais, não corrige as distorções estruturais e tampouco transforma alguém, magicamente, em escritor ou pesquisador. Mas também não dá pra fingir que ela não tem potencial de, no mínimo, tensionar as fronteiras simbólicas que separam quem pode e quem não pode ocupar determinados espaços discursivos.
Quando alguém diz: “Ah, mas agora qualquer um escreve com IA…”, a pergunta que imediatamente surge é: e quem definiu que “qualquer um” não podia escrever? Quem construiu essa cerca simbólica que separa quem tem legitimidade para falar, publicar e produzir saber, e quem deve ficar eternamente na condição de quem apenas consome o conhecimento produzido pelos outros?
Nós, do Observatório da Educação Campineira, seguimos defendendo que o uso da Inteligência Artificial seja, sim, ético, responsável, democrático e, acima de tudo, colocado a serviço da valorização dos saberes que emergem da prática. Sem romantizar. Sem fetichizar. E também sem demonizar. É tecnologia. E, como toda tecnologia, pode ser usada para ampliar direitos ou para reforçar desigualdades. A disputa está dada.
Juliana não virou escritora porque usou IA. Ela não virou pesquisadora do dia pra noite. O que ela fez foi o que sempre fez na sua prática cotidiana: observou, sistematizou, refletiu e, agora, organizou isso na forma de texto. E a IA, nesse processo, foi apenas um recurso. Não foi atalho, não foi milagre.
Portanto, a pergunta permanece: quem tem medo da IA? Talvez não sejam as professoras da ponta, que enfrentam diariamente os desafios da educação pública nas escolas cogeridas, nas conveniadas, na rede direta. Talvez quem tenha medo seja quem, há muito tempo, aprendeu a usar a palavra como território privado, cercado, protegido — e, agora, percebe que esse muro está começando a ruir.
E se há uma lição aqui, é simples, direta e inegociável: não dá mais pra aceitar que a escrita, o discurso e a produção de conhecimento sejam privilégio de poucos. Porque não são. Nunca foram. E agora não dá mais pra fingir que são.
Vanessa Crecci é pedagoga, doutora em Educação pela Unicamp e fundadora do Observatório da Educação Campineira. Atua como roteirista, apresentadora da EducaTV e professora da Rede Municipal de Campinas.