O meio musical brasileiro tem acompanhado com atenção a sucessão do maestro Victor Hugo Toro na Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, e a razão é bastante simples – trata-se de um dos conjuntos sinfônicos mais tradicionais do País. Sendo assim, é natural que, além dos músicos da orquestra, principais interessados no assunto, outros entes culturais da cidade – e por que não do Brasil – se manifestem e sugiram nomes para o cargo. Porém, muita calma nessa hora! O mundo mudou radicalmente nos últimos 15 anos e mesmo orquestras sinfônicas – conhecidas por sua rigidez institucional – fizeram movimentos para aperfeiçoar seus processos internos, dentre os quais, a escolha de maestros titulares.
Seja qual for o processo escolhido para tal sucessão, e com exceção de instituições de perfil totalitário, em algum momento haverá uma votação, ou várias votações, de músicos ou de um comitê mais amplo que pode até incluir o público. Não vou utilizar como base em minha argumentação o que acontece na Filarmônica de Berlim, que é uma orquestra onde tudo é muito específico e adaptado a uma realidade que só eles conseguem manter. Mas mesmo em Berlim, os músicos votam com qual maestro querem trabalhar.
A diferença do Brasil com outros lugares do mundo civilizado começa com o tempo das coisas. Na Europa e nos Estados Unidos, e mesmo na vizinha Argentina, a maioria das orquestras realiza processos que duram no mínimo um ano, dada a complexidade do tema e suas etapas de realização.
Por aqui temos visto de tudo: sucessões em orquestras de órgãos públicos em completo sigilo, onde quem decide não tem a mínima noção do que está acontecendo, ou votações de músicos de orquestra feitas na correria e sem nenhuma preparação, muito menos uma pesquisa mínima de possíveis candidatos. Posso até citar um caso dos mais bizarros que presenciei ao vivo e a cores em MG, onde o presidente de uma determinada instituição cultural sugeriu aos músicos que votassem em cédulas de papel em qualquer nome de maestro do planeta Terra e depositassem esse papel numa “cumbuca”, que ele, presidente, levaria para casa e traria o resultado no dia seguinte! O que se ouviu na sala de ensaios após essa fala? Um estrondoso silêncio, que revela muito sobre a classe musical.
É muito curioso analisar o rigor com que os candidatos a músicos são cobrados para entrar numa orquestra. São provas estressantes, com várias fases, onde se tocam concertos solo e trechos de obras difíceis para orquestra, e às vezes uma entrevista e prova de conhecimentos musicais. Atualmente, muitos músicos tomam remédios para realizar tais provas, tamanha a pressão a que são submetidos.
Por que para o cargo de maior visibilidade da orquestra haveria uma total falta de critérios minimamente elaborados para se avaliar um candidato a maestro?
É justo determinar em 30 minutos de reunião, com nomes jogados ao vento por músicos que conhecem somente os maestros que ali estiveram em tempo recente, uma lista com 20 nomes para serem “avaliados” ali mesmo sem nenhuma pesquisa, sem mesmo saber se tais nomes estão interessados? Neste momento, existem no País duas orquestras – Municipal de Campinas e Teatro Municipal do Rio de Janeiro – que poderiam fazer história ao inverter essa lógica da escolha unicamente por votação de músicos e dar certa transparência – tão bem-vinda no serviço público – a esse processo.
A Liga das Orquestras Americanas, uma entidade que representa praticamente todas as orquestras profissionais americanas e algumas internacionais (a OSESP é um dos membros), tem em seu site um livro gratuito chamado The music director search handbook (manual da busca por diretor musical, ou maestro), que sugere as melhores práticas atuais de como realizar a sucessão de um maestro. São 61 páginas de um detalhado processo que dura, em média, 12 meses, podendo se estender por 24 meses.
Mas vou resumir as etapas para nossa análise: a) num primeiro momento forma-se uma comissão de busca, que conta obviamente com músicos da orquestra, representantes da administração e algum convidado, totalizando em média 12 pessoas. Essa comissão elabora um documento que servirá de base para uma chamada pública, estabelecendo o perfil do candidato a maestro; b) abre-se uma chamada pública para identificar os interessados, que enviam um currículo de no máximo 3 páginas e alguns materiais complementares como recomendações e links para vídeos; c) após receber em média 300 inscrições, a comissão estabelece critérios para se chegar a uma lista de mais ou menos 10 nomes, após muita pesquisa e entrevistas com candidatos.
Esses dez fazem uma visita pessoal à cidade para uma entrevista com a comissão, sem ter contato com a orquestra, na qual detalham seu projeto artístico e sua visão para o grupo; d) 5 finalistas são escolhidos para a última etapa, que é presencial e conta com um concerto regido por cada candidato, nas mesmas condições. Tem orquestras que fazem esses concertos em um único mês, e tem orquestras que os realizam esparsos durante o ano, numa espécie de gincana que movimenta toda a comunidade. Após o último concerto, a comissão faz sua indicação, com voto da orquestra (que não é majoritário) e analisando todos os aspectos até ali envolvidos – currículo, referências, entrevistas, projeto artístico, concerto, etc.
Sabemos que esse processo é um pouco fora da realidade brasileira, mas algum aprendizado pode ser feito a partir dessas ideias.
Campinas e Municipal do Rio poderiam abrir um edital público para escolher seus maestros e formar comissões amplas para avaliar os candidatos, ainda que em processos mais enxutos.
Isso ajudaria prefeitos e governadores a fazer indicações mais técnicas, calcadas em processos sem vícios e com a lisura esperada no setor público. Maestros têm que ter a capacidade de gerir e idealizar projetos, ter formação na área, ter repertório musical suficiente, ser um exímio comunicador, entender de leis de incentivo, tratar bem os músicos, dentre muitas outras exigências. Existem muitos candidatos preparados no Brasil, com estudos no Exterior ou com ampla experiência no País, que poderiam se candidatar e fazer enormes benfeitorias artísticas nas orquestras e em suas respectivas cidades.
Qual o medo de colocar um edital público? Todos sairiam ganhando, administração, orquestra e público. A profissão de maestro no Brasil está com enorme descrédito, em parte por culpa dessas votações relâmpago, que não valorizam a meritocracia e perpetuam esse círculo vicioso.
Marcelo Ramos é maestro, foi titular da Sinfônica de MG, assistente das orquestras de Brasília e Amazonas Filarmônica, doutor em regência orquestral pela Ball State University, mestre em regência orquestral pelo Cleveland Institute of Music, ex cellista da OSESP, bacharel em violoncelo pela UnB, e atualmente é professor na Universidade Federal de Minas Gerais.