Certamente, a “Residência em Saúde” é a melhor maneira de formar nossos novos profissionais de saúde tanto na aquisição de conhecimentos e habilidades como no desenvolvimento de personalidade e ética profissional. A Residência Médica (RM) é mais tradicional dentre as profissões de saúde e os primeiros programas de RM remontam ao final do século XIX (1889) no Hospital da Universidade Johns Hopkins nos EUA pela iniciativa do professor Willian Halsted, eminente cirurgião oncológico e que se notabilizou pela cirurgia para o câncer de mama.
O termo residência surgiu neste período tendo em vista a permanência dos jovens médicos cirurgiões praticamente 24h à disposição, como se morassem e vivessem dentro do hospital. Outro importante professor canadense, William Osler, foi responsável, no início do século XX, também na Johns Hopkins, pela implantação da primeira RM em Medicina Interna.
O professor Osler fez a seguinte frase emblemática sobre a RM: “Quem estuda medicina sem livros navega por mar desconhecido, mas quem estuda medicina sem pacientes não vai para o mar de forma alguma”. Durante a Segunda Guerra Mundial, a RM se consolidou. Era interessante observar que jovens médicos em campos de batalha com péssimas condições de trabalho, em todos os sentidos, tinham mais habilidades e atitudes quando comparados àqueles que ficaram em ambientes protegidos.
Talvez esta seja a base das residências: tempo integral e dedicação exclusiva ao treinamento em serviço, supervisionado e orientado ao ganho de habilidades, conhecimentos e atitudes, inclusive do ponto de vista ético, fundamentais ao futuro exercício profissional.
No Brasil, o primeiro programa de RM foi criado no último ano da Segunda Grande Guerra (1945), no Departamento de Ortopedia da Faculdade de Medicina da USP junto ao recém-inaugurado, hoje o maior complexo hospitalar da América Latina, o Hospital das Clínicas de São Paulo. Nos anos que se seguiram, outros programas em outros estados e em outras especialidades foram sendo criados. Entretanto, apenas na década de 70 ocorreu a disseminação dos programas de RM no Brasil.
O decreto 80.281 de 05 de setembro de 1977 instituiu a RM como pós-graduação “latu senso” em Medicina e criou a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) para regulamentar e fiscalizar este programa em todo o País. No âmbito dos estados, foram criadas as Comissões Estaduais que criam vagas, distribuem bolsas, regulam e fiscalizam o sistema em sua área de abrangência. A RM certamente é um dos programas mais importantes e vitoriosos dentro da formação de médicos especialistas e não tem qualquer paralelo em outro ramo de atividade de formação profissional.
O bom funcionamento e resultados obtidos pela RM no Brasil, tornou-se modelo para a expansão em outras áreas da saúde até atingirmos nos dias de hoje, a residência multiprofissional.
Assim, em 1961, surgiu a residência em enfermagem no Hospital Infantil do Morumbi na cidade de São Paulo. Em 1973, iniciou-se o segundo curso de especialização nos moldes da residência em enfermagem, na área médico-cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. A partir daí muitos estados e universidades foram criando seus programas de residência em inúmeras profissões de saúde. A criação do SUS na Constituição de 1988 incluiu também a obrigação de formação profissional em saúde dentro de suas obrigações. Assim, na área da saúde, o SUS compartilha sempre estas obrigações de formar especialistas em saúde com o MEC e, é claro, com as instituições de Ensino Superior e Hospitais de Ensino.
A residência passou a ser o melhor mecanismo de formação de especialistas na área da saúde.
Outras profissões fora da área da saúde têm buscado mecanismos semelhantes à residência para a especialização de seus recém-formados. Em Campinas, os primeiros programas de RM começaram na Unicamp na década de 1970. Eu, apenas para exemplificar, fui o segundo médico residente da disciplina de hematologia e hemoterapia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas entre 1976 e 1979. A partir daí centenas ou milhares de colegas médicos se formaram e outros programas, dentro da Unicamp e em outras universidades e faculdades, foram criados.
Em 2019, criamos pela lei municipal 15.779 e regulamentada pelo decreto 20.525 o programa “Mais Médicos Campineiro”. Este programa foi fomentado e apoiado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e desenvolvido pelas Faculdades de Medicina da Unicamp, PUCC e São Leopoldo Mandic (através de seus departamentos de saúde coletiva), pela “Rede Mario Gatti” e pela própria SMS.
O inusitado é que este é um programa único e compartilhado, com grade curricular também única, com médicos preceptores da própria rede municipal de saúde e idealizado para formar médicos especialistas em “saúde da família e comunidade” com 60 vagas anuais (total de 120) e bolsas diferenciadas. Neste ano de 2021, a lei municipal 16.082 (ainda não regulamentado por decreto), criou o programa “Mais Saúde” com mais 60 vagas anuais (também 120 vagas no total) em residência multiprofissional para dez profissões de saúde. Estas duas leis e seus respectivos programas são exemplos de como os poderes públicos podem e devem apoiar a formação profissional dentro dos melhores padrões educacionais, técnicos, éticos e científicos como parte fundamental de políticas públicas desejáveis à sociedade.
A residência em saúde é uma poderosa ferramenta de formação de profissionais e de especialistas e pode ser cada vez mais ampliada, qualificada e utilizada como instrumento da evolução, qualificação e transformação da saúde pública em nosso País.
♦ Martins GDM, et al. Implementação de residência multiprofissional em saúde de uma universidade federal: trajetória histórica. Rev Gaucha Enferm 2016; 37(3); e57046.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020