Temos duas datas comemorativas para o Dia do Doador: 14/06, Dia Mundial e 25/11, Dia Nacional. O Hemocentro de Campinas foi criado em 25/11/1985, portanto completará 36 anos de atividades ininterruptas e fundamentais a nossa sociedade. Gostaria, neste espaço, de parabenizar o nosso Hemocentro e, principalmente, os nossos doadores. Sem eles, nada disto seria possível. Gostaria ainda de contar um pouco desta história que foi a implantação do programa nacional de sangue e hemoderivados, importante dentre as políticas públicas inseridas no SUS, mas que precisa retomar sua prioridade.
Até a década de 1960, a atividade hemoterápica brasileira era exercida pelos bancos de sangue de caráter hospitalar, a maioria de natureza privada, sem nenhuma ordenação ou regulamentação por parte do Estado brasileiro. A primeira constatação da importância do sangue como insumo essencial para o Sistema de Saúde veio, paradoxalmente, com a “revolução” de 1964. Os militares, ante a iminência de “conflito armado”, constataram a inexistência de sangue e componentes estocados em quantidade suficiente para atender as possíveis vítimas de um único dia de combate. A partir deste momento e devido à constatação da importância estratégica do sangue em casos de conflagração é que foram tomadas as primeiras iniciativas públicas no sentido de normalizar esta atividade.
Foi criada a Comissão Nacional de Hemoterapia (CNH), que deveria fixar uma política e disciplinar as atividades de coleta, estocagem e transfusão de sangue no País (Decreto 54.494 de outubro de 1964).
Propôs uma série de princípios básicos que viriam a nortear toda a política nacional de sangue com destaque ao primado da doação voluntária. A CNH se tornou órgão permanente de alto nível, criada pela Lei 4701 de junho de 1965 e subordinada ao Ministério da Saúde (MS). Era responsável pela supervisão das atividades relativas ao sangue e produziu inúmeras normas legais, mas não avançou no sentido de uma política permanente para o sangue.
Em 1978, a CNH foi transformada em câmara técnica perdendo as suas prerrogativas legais de condutora da política do sangue. Em termos históricos, importante para o estabelecimento de uma política nacional do sangue foi o professor Pierre Cazal, diretor do Centro de Transfusão de Montpellier, França, que veio ao Brasil em 1969, através da OPAS, com a finalidade de estudar “a criação de um órgão técnico central no Brasil para encarregar-se do controle, normas, pesquisa e formação de pessoal no campo da Hemoterapia”. O objetivo inicial foi modificado e passou a ser o “Estudo da Organização da Hemoterapia no Brasil”.
Na mesma linha do professor Cazal, em 1976, o professor Francisco Antonácio, da USP, após visitar praticamente todos os estados brasileiros, concluiu “que o exercício da Hemoterapia no País oferecia pouca proteção à saúde do doador, restringia a qualidade do sangue a frações utilizadas para fins transfusionais e expunha o paciente a riscos tecnicamente evitáveis…”.
O elenco de medidas propostas nestes dois estudos desembocou, em 1980, no Programa Nacional do Sangue e Hemoderivados – PRÓ-SANGUE – cujo objetivo básico era o desenvolvimento em todo território nacional de uma rede de Hemocentros e baseado no modelo hemoterápico francês que por muitos anos foi o paradigma para o Brasil.
Em 1986, Sangue e Hemoderivados foi um dos assuntos debatidos na 8ª Conferência Nacional de Saúde e, devido à sua importância, mereceu ser ampliado em conferências estaduais. Em 1986 o PRÓ-SANGUE foi transformado na Divisão Nacional de Sangue e Hemoderivados (DINASHE) que coordenou a elaboração, em 1988, do Plano Nacional de Sangue e Hemoderivados (PLANASHE) para o período de 1988 a 1992.
Entre as inúmeras ações propostas neste plano encontrava-se o desenvolvimento e a implantação do Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados (SINASHE).
Todo este movimento não foi resultado de atividade governamental planejada, mas sim resposta emergencial do governo federal diante do quadro alarmante da transmissão do vírus HIV pelas transfusões de sangue no Brasil. Em 1987, cerca de 8% de todos os casos de Aids notificados foram determinados pelas transfusões de sangue contaminado. Este fato, juntamente com a pressão da opinião pública levou o governo a promulgar a Lei nº 7649 (janeiro/1988), conhecida como “Lei Henfil”, que impunha rígidos controles sobre a atividade. Os Hemocentros públicos eram poucos e desaparelhados. O aparecimento da Aids, como doença transfusional, mudou completamente esta realidade, criando a necessidade do fortalecimento da área pública nesta área de vital importância para o SUS. Em 1998, a qualidade do sangue foi definida como uma das Metas Mobilizadores Nacionais. Apesar destas metas, pouco se avançou no sentido de implantação de uma Política Nacional de Sangue e Hemoderivados. Foram investidas vultosas somas de recursos em infraestrutura, mas os resultados globais, em muitos aspectos, foram insatisfatórios devido à ausência de um diagnóstico preciso da hemorrede nacional.
Em 1999, as atividades hemoterápicas foram transferidas para a da recém-criada Anvisa.
No plano legal, em março de 2001 foi promulgada a Lei Federal nº 10.205 que regulamenta o § 4º do artigo 199 da Constituição Federal, que proíbe a comercialização de sangue, componentes e derivados, além de estabelecer o ordenamento institucional para a execução adequada das atividades hemoterápicas. Por esta Lei, as Políticas Nacionais de Sangue, Componentes e Hemoderivados terão por finalidade garantir autossuficiência do País nesse setor e harmonizar as ações do poder público em todos os níveis de governo, e será implementada, no âmbito do Sistema Único de Saúde, pelo Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados.
Em 2004, agora dentro do MS, foi criada a Coordenação da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados (Decreto 5045). Este novo período que se mantém até nossos dias, infelizmente, ainda tem se caracterizado por certa desarticulação política dos agentes envolvidos. É fundamental que tenhamos uma consciência crítica e participativa no sentido de auxiliar os poderes públicos a fomentar os avanços necessários e improrrogáveis. O programa do sangue é um dos pilares da saúde pública em nível terciário e quaternário e deve ser continuadamente ser aperfeiçoado.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.