Nunca foi tão espinhoso o exercício profissional do jornalismo na história contemporânea. Vítima da falta de lucidez e, sobretudo, do incentivo a comportamentos antidemocráticos de milícias digitais, o jornalista é considerado hoje um inimigo da sociedade por pequena (mas barulhenta) parcela da opinião pública.
A ele é atribuído um comportamento nocivo, uma atitude que seria contrária aos princípios da isenção. Está aqui um dos debates mais contraditórios de um regime que se julga democrático. Parte dessa ira se deve ao entendimento, errôneo, de que esse profissional está a serviço da política. Nos tempos atuais, como tem reforçado parte dos internautas em suas redes repletas de ódio, esse jornalista estaria a serviço da “esquerda”.
São fartos os exemplos que reforçam este estereótipo.
Não há, obviamente, um comportamento linear de todos os profissionais. É assim também em qualquer profissão. O mercado sabe distinguir os bons dos maus. Isso vale para os veículos de comunicação, seus CEOs e seus patrões. Esse olhar pode ser baseado em superficiais classificações de algoritmos, mas também derivado da percepção do trabalho cotidiano desses profissionais. Assim vale para médicos, advogados, políticos, motoristas e toda sorte de ocupações.
A sociedade tem o direito de selecionar – e o dever de denunciar aqueles que atentam contra as regras e as leis. Uma democracia plena sabe usar o sistema de pesos e contrapesos disponível por meio das instituições e das ferramentas sociais.
Sob qualquer lado do espectro ideológico, é possível se posicionar, com argumentos. Ao jornalismo cabe aprofundar os debates, buscar o equilibrio, cobrar as autoridades, ancorar-se nas análises de especialistas com notório conhecimento e manter o espírito crítico.
É justamente esse jornalismo crítico que tem incomodado parte da sociedade. Num Brasil polarizado politicamente, o exercício da profissão tende a ter seu cotidiano envenenado.
Liberdade de imprensa
A data de hoje, 7 de junho, é dedicada à liberdade de imprensa. No dia 7 de junho de 1977, cerca de três mil jornalistas assinaram um manifesto exigindo o fim da censura e a instauração de uma imprensa livre no Brasil. Foi um ato de coragem. O País vivia o auge da ditadura militar.
Um pouco antes, em outubro de 1975, o então diretor da TV Cultura, Vladimir Herzog, havia sido torturado até a morte por agentes do governo. O crime deixa até hoje uma chaga aberta na família e no próprio processo de redemocratização. Aquele período ainda não mereceu a devida correção histórica, nem mesmo o reconhecimento dos algozes e dos, hoje, defensores da tortura.
Assim, desde 77, no dia 7 de junho, é celebrado o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa.
Essa vigília segue atenta. Organizações Não Governamentais e entidades como a Repórteres sem Fronteiras, Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) têm, sistematicamente, denunciado ataques físicos e digitais aos jornalistas e colocado esse tema para conhecimento da opinião pública.
Neste sentido, os rankings recentes mostram um robusto crescimento dessas agressões aos profissionais de mídia. O Portal dos Jornalistas, site dedicado a discutir temas relevantes da comunicação, publicou recente estudo mostrando o avanço dessa violência. Ela acontece na esteira de discursos de ódio manifestados por líderes antidemocráticos e influenciadores digitais. Essa narrativa tem sido incorporada por pessoas que, à luz da história, desconhecem os anos sombrios de perseguição e censura. Jovens que ecoam discursos envenenados contra profissionais, repetindo frases simplistas e visões deturpadas.
Dentro do atual modelo digital, favorecido pelas ferramentas de disseminação da informação, esses ataques ganham proporção e passam a fazer sentido para quem se contenta com o simplismo de um texto, áudio ou vídeo distribuído pelas redes, em parte, impulsionados por bots.
Violência
O crescimento da violência contra jornalistas e comunicadores tem sido atestado ano a ano. Um desses observatórios é produzido pela Abraji. A entidade indica um aumento de 27% nos ataques contra profissionais brasileiros nos cinco primeiros meses desse ano em relação ao mesmo período de 2021. Por ser ano eleitoral, a tendência é que esses números ganhem musculatura.
De acordo com o levantamento, entre janeiro e abril de 2022, foram identificados 151 episódios de agressão física e verbal ou outras formas de cercear o trabalho jornalístico, como restrições de acesso à informação, ataques de negação de serviço na internet, exposição de dados pessoais, processos civis ou penais, assassinato, assédio sexual e uso abusivo do poder estatal.
O Brasil aparece em 110º lugar no Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa 2022, relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras que avalia as condições para o exercício do jornalismo em 180 países e territórios. Nos últimos dez anos, pelo menos 30 jornalistas foram assassinados no País. Os ataques digitais contra os profissionais também cresceram, principalmente contra jornalistas mulheres.
O discurso de ódio do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra a mídia que não o adula alimenta e envenena esse cenário.
Redes digitais, com seus sistemas de disparo cada vez mais sofisticados, multiplicam e reverberam as narrativas que transformam o profissional em vilão. Caso recente mostra a gravidade dessa situação. Um jornalista que denunciou um esquema de fake news numa rede bolsonarista passou a ser atacado e ameaçado. O perfil das agressões espanta.
Esse caso recente se refere ao jornalista Lucas Neiva, do Congresso em Foco, que virou alvo de ameças e teve dados pessoais vazados por denunciar a tática de um fórum anônimo destinado a produzir fake news em favor de Bolsonaro. “Parece que alguém vai amanhecer morto”, postou um usuário. “Todo jornalista deve ser estripado e afogado em seu próprio sangue enquanto todas as mulheres de sua família serem estupradas e mortas com requinte de crueldade. Jornalista tem mais é que ser arremessado ao mar com as mãos atadas nas costas”, vociferou esse hater.
Não é, obviamente, o padrão dos ataques da maioria que discorda de uma reportagem jornalística, mas dá uma boa ideia do submundo que consegue sair de seu pântano enlameado para atiçar usuários que navegam na internet e na deep web.
Campinas
Casos de ataques a equipes de TV têm se multiplicado. Desde penetras durante gravações ao vivo, registradas pelas câmeras, com os indefectíveis gritos de “Globo lixo” e “jornalista lixo”, até episódios de ameaças a profissionais no exercício da profissão por pessoas interessadas em barrar determinadas matérias. No último dia 14 de fevereiro, uma equipe de reportagem da TV Thathi, afiliada da Rede Record, sofreu um atentado na madrugada, em frente à 2ª Delegacia Seccional de Campinas.
O cinegrafista Leandro Marques foi atropelado de propósito enquanto acompanhava uma ocorrência sobre violência doméstica. Ele fazia uma gravação junto com a repórter da emissora, Juliana Giachini, quando o motorista de um carro acelerou e avançou contra o profissional. Nas imagens, é possível ver o momento que o suspeito atinge o repórter cinematográfico. Marques teve escoriações leves nas pernas e nos braços. A repórter não ficou ferida.
Pós-verdade
No complexo mundo contemporâneo, com o smartphone estando “acoplado” aos corpos humanos, seria uma bobagem considerar o jornalismo como único e legítimo produtor de conteúdo. Dar voz a públicos que jamais teriam oportunidade de se manifestar é uma conquista. Parte do incômodo da opinião pública ao comportamento da mídia tradicional é, com razão, a soberba que ao longo da história exibiram. Esse mea culpa é preciso ser feito.
Porém, ter voz para a manifestação não é, por si só, um direito incontestável à liberdade. Nem de expressão nem de imprensa. É necessário ter responsabilidade sobre o que se fala, sobre o que se grava e sobre o que se escreve. O advento das mídias sociais revolucionou a forma de produzir conteúdo. A diversidade de opinião passou a ser um ativo importante. Grupos que não tinham espaço na cobertura jornalística tradicional passaram a ter suas páginas para se relacionarem com seus públicos. Foi uma conquista extraordinária.
Considerar que a rede social é nociva, por essência, é uma generalidade burra, como diria Nelson Rodrigues. Nem Umberto Eco acerta ao considerar que toda voz é imbecil.
É preciso separar o joio do trigo, uma tarefa tão prosaica quanto escolher os melhores grãos de feijão.
A complexidade desse debate caminha para algo praticamente insolúvel na medida em que o mundo da pós-verdade passa a ter raízes profundas na sociedade. Referendar apenas aquilo que se acredita está na base, em parte, desse ódio aos jornalistas. Se uma reportagem não o atrai nem o convence, isso não é passaporte para agressão. Tampouco é um atalho para rotular o autor do conteúdo como representante da ideologia “A” ou “B”.
A questão não é simples. É por isso que a sociedade contemporânea vive, nos mais diversos cantos do mundo, uma encruzilhada civilizatória. Fortalecer o jornalismo profissional, a despeito das vozes dissonantes, é fundamental para se ter um exercício pleno democrático. A liberdade de imprensa é uma conquista da civilização avançada. Países com imprensa livre são os que conseguem aprofundar os debates mais essenciais, aqueles que efetivamente interessam ao coletivo: políticas públicas, investimento social, saúde, educação, transporte, desenvolvimento humano e meio ambiente, entre outros assuntos da agenda urgente de qualquer nação.
Resumir o coletivo de um país à discussão simplista do “contra e a favor” é um atraso no necessário desenvolvimento. Neste sentido, a data deste 7 de junho diz muito sobre o que o Brasil precisa trilhar se desejar sendo um país democrático, sob qualquer governo, sob qualquer partido, sob qualquer ideologia.
Não é a ideologia que tirará o País de seus atrasos históricos, mas a capacidade de a sociedade entender o quão nefasto é o debate viciante e maniqueísta, uma discussão que turva a visão e que tira a possibilidade de buscar soluções de interesse público.
O Hora Campinas, em seu micropapel brasileiro, mas com a energia e a disposição de um colegiado que defende e exercita o jornalismo profissional, poderia até ser signatário da campanha que neste 7 de junho faz o consórcio de veículos brasileiros, grandes conglomerados de mídia que aproveitaram a data para reforçar a defesa intransigente da democracia e da liberdade de imprensa.
Em sua missão dentro da Região Metropolitana de Campinas (RMC), o Hora vem a público referendar o valor inegociável da liberdade e reforçar que tem clareza de que deve seguir no caminho do jornalismo humanizado, da cobertura equilibrada e da valorização da diversidade.