Houve um tempo, e não muito distante, em que a cidade de Paulínia ostentava a charmosa alcunha de “Hollywood brasileira”. Não era para menos, afinal, o pequeno município do interior paulista, situado a menos de 30 km de distância da metrópole de Campinas, estendia anualmente o tapete vermelho para grandes figuras do cinema, num suntuoso teatro que servia de palco para um festival repleto de charme e prestígio.
As noites glamorosas desse passado não tão remoto contavam com exibição de filmes e entrega de prêmios em diferentes categorias, levando em conta produções financiadas com recursos públicos dos cofres de Paulínia e rodadas em estúdios da própria cidade, entre outras locações na região de Campinas.
Qualquer semelhança com a pomposa cerimônia do Oscar, a mais importante e famosa premiação do cinema mundial, que chega à 95ª edição neste domingo (12), às 21h (horário de Brasília), no Teatro Dolby, em Los Angeles, nos Estados Unidos, não é mera coincidência.
Idealizado pelo ex-prefeito Edson Moura, que governou o município entre 1993 e 1996, e depois entre 2001 e 2008, totalizando três gestões, o Festival de Cinema de Paulínia, vinculado ao Polo Cinematográfico de Paulínia, nasceu com proposta pretensiosa de se equiparar aos principais empreendimentos do gênero no mundo, inspirado principalmente no tradicional Festival de Cannes, na França, para além da meca do cinema norte-americano.
Por incrível que pareça, contrariando quase todas as expectativas, o governante teve êxito em cumprir a ambição que prometia, concretizando o sonho de criar um produto que esbanjasse luxo e requinte, atraindo gente do Brasil inteiro e até de fora do país, desde atores, diretores e produtores até jornalistas, estudantes e cinéfilos em geral, no período entre 2008 e 2014.
O evento de gala que servia de vitrine para as produções, subsidiadas pela Prefeitura de Paulínia e realizadas na cidade, acontecia sempre no mês de julho, no Teatro Municipal Paulo Gracindo, o encantador e colossal monumento construído com seis colunas gregas, inaugurado em julho de 2008, com capacidade para 1.300 pessoas. O grande vencedor entre os filmes recebia o Troféu Menina de Ouro, além de parruda quantia em dinheiro.
“Um polo similar existe em Almería, na Espanha, lugar meio ermo, que virou polo internacional e serviu de modelo para Paulínia”, revela o jornalista João Nunes, que se beneficiou da implantação do audacioso projeto em Paulínia, pois na época atuava como repórter de Cultura do jornal Correio Popular. “Eu tinha matéria diária. Teve um momento em que havia quatro produções sendo rodadas na região”, relembra Nunes, que também chegou a participar do festival como júri.
“A cidade cuja fama advinha das atividades sem qualquer charme de uma refinaria de petróleo, de um dia para outro, passou a ser associada ao cinema. Assim, do nada, em um lugar árido e, aparentemente, não predestinado a receber um projeto daquelas dimensões, nasceu um belo teatro e quatro estúdios de tamanho grande, médio e pequeno, além de outros prédios menores. A interferência arquitetônica naquele local marcaria culturalmente a RMC no final da primeira década deste século e o começo da segunda”, descreveu o jornalista e escritor João Nunes, de Campinas, em seu livro “Paulínia: Uma História de Cinema”, publicado em 2019, pela editora Paco Editorial.
Representantes brasileiros do Oscar em Paulínia
Única artista brasileira até hoje a receber uma indicação ao Oscar na categoria de atuação, façanha alcançada pelo magistral trabalho no filme “Central do Brasil” (1998), do diretor Walter Salles, a renomada atriz carioca Fernanda Montenegro foi a responsável pelo “batismo” do Festival de Cinema de Paulínia, ao ser convidada e assumir o papel de mestre de cerimônia da primeira edição do evento, realizada em 2008.
Pouco antes de protagonizar “Central do Brasil”, Fernanda Montenegro também havia integrado o elenco da terceira das quatro produções brasileiras da história indicadas ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “O Que É Isso, Companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, que concorreu ao prêmio há exatamente 25 anos. Os dois outros filmes da lista são “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, e “O Quatrilho” (1995), de Fábio Barreto. Nenhum deles venceu.
Responsável pelo filme brasileiro com mais indicações ao Oscar até hoje, no caso “Cidade de Deus” (2002), que concorreu a quatro prêmios (melhor direção, roteiro, edição e fotografia), o diretor paulistano Fernando Meirelles integrou a primeira leva de cineastas beneficiados pelo apoio financeiro de Paulínia, com a contrapartida de gravar no polo da cidade, onde rodou algumas cenas do filme “Ensaio sobre a Cegueira” (2008), com um elenco estelar composto por grandes nomes do cinema internacional como Julianne Moore, Mark Ruffalo e Danny Glover. Este último, mais tarde, daria as caras em Paulínia.
Uma das noites mais marcantes da história do Festival de Cinema de Paulínia aconteceu em 2011, na concorrida sessão de estreia do filme “O Palhaço”, o segundo longa-metragem dirigido pelo ator Selton Mello, que em junho do ano passado se tornou membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, entidade organizadora do Oscar.
Indicado ao Oscar de melhor diretor pelo filme “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), que rendeu o prêmio de melhor ator ao norte-americano William Hurt, o cineasta argentino naturalizado brasileiro Héctor Babenco gravou seu último filme, “Meu Amigo Hindu” (2016), nos estúdios de Paulínia. Isso aconteceu em 2015, um ano antes de sua morte, em julho de 2016, e cinco anos depois de ter sido escolhido como o homenageado da terceira edição do Festival de Paulínia, em julho de 2010.
Na ocasião da homenagem a Babenco, a noite de abertura do evento contou com a exibição do filme mais importante de sua carreira, justamente “O Beijo da Mulher Aranha”, com participações de Sônia Braga e sua irmã, a campineira Ana Braga, mãe da também talentosa atriz Alice Braga, uma das poucas brasileiras que conseguiram se embrenhar em Hollywood ao longo da história.
“Eu me comovi ao rever ‘O Beijo da Mulher Aranha’ e a homenagem a Héctor Babenco, e me orgulhei da mais linda noite da história dos festivais com o teatro lotado e mais de mil pessoas na segunda sessão de ‘O Palhaço’, o instante mágico que levou Selton Mello a declarar a segunda frase mais contundente de Paulínia: ‘Foi a melhor sessão de cinema da minha vida’. A primeira foi de Fernanda Montenegro: ‘Uma cidade sem teatro não é cidade. Paulínia é Paulínia a partir deste teatro'”, relata João Nunes, no livro “Paulínia: Uma História de Cinema”.
“Nos poucos anos em que o festival foi realizado, Paulínia ficou conhecida como a ‘Capital Nacional do Cinema’, equiparada a Gramado”, aponta a jornalista Lázara Paes Leme.
“Nos eventos lá, tive a oportunidade de conversar pessoalmente e tirar algumas fotos com atores que sempre faziam questão de estar presentes na abertura do festival e nas premiações. E foram tantos: Fernanda Montenegro, Sophie Charlotte, Bárbara Paz, Nanda Costa, Daniel Oliveira, Juliano Cazarré, Lúcio Mauro Filho, Ângelo Paes Leme, Luiz Gustavo, Marcos Caruso, o casal Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli, entre outros”, lista a jornalista Lázara Paes Leme, de Campinas.
Embora o sobrenome possa sugerir, ela não possui nenhum grau de parentesco com o ator brasileiro Ângelo Paes Leme, que já atuou ao lado de alguns dos maiores nomes do cinema brasileiro, como Rodrigo Santoro, Wagner Moura, Glória Pires, Lázaro Ramos, Cláudia Abreu, Diogo Vilela e Selton Mello. Com esse último, inclusive, Ângelo contracenou em dois filmes, ambos lançados em 2008: “Meu Nome Não É Johnny” e “Os Desafinados”, trabalho que lhe rendeu o prêmio de melhor ator coadjuvante na primeira edição do Festival de Paulínia, em 2008.
Astros e estrelas internacionais em Paulínia
Grandes figuras do cinema internacional também passaram pela cidade de Paulínia, tanto pelo polo quanto pelo festival, entre elas o ator italiano Franco Nero, mais conhecido pelo papel do pistoleiro Django, no filme homônimo de 1966, que se tornou um clássico do diretor italiano Sergio Corbucci, um dos principais expoentes do gênero “western spaghetti”.
Com cerca de 150 filmes no currículo, incluindo participação especial em “Django Livre” (2012), faroeste do diretor Quentin Tarantino, inspirado no original dos anos 60, Franco Nero integrou o elenco de “A Memória Que Me Contam” (2012), dirigido pela cineasta brasileira Lúcia Murat, com cenas gravadas nos estúdios do Polo Cinematográfico de Paulínia, em 2011. O filme, contemplado por um dos editais lançados pela Secretaria de Cultura de Paulínia, também estrela as atrizes brasileiras Simone Spoladore e Irene Ravache.
“Participei de uma cena em que Paolo, vivido por Franco Nero, estava na prisão e a personagem de Irene Ravache vai junto com o advogado, no caso meu personagem, conversar com ele. Eu lhe entregava ou mostrava alguns papéis. Uma cena muito pequena, mas que levou horas para filmar”, relembrou o ator Marcos Zuin, de Campinas, em contato com a reportagem do Hora Campinas.
“Nos intervalos, conversei muito com a Irene e com o Franco também, que foi muito simpático e profissional. Falei com meu ‘portinglês’ que eu era seu fã e tinha três grandes atrizes italianas como meus ídolos: Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale e Sophia Loren. E que também gostava muito dos trabalhos de Vanessa Redgrave, sua esposa. Foi assim, tudo muito rápido”, acrescentou Zuin.
“É estranho e desconfortável estar diante de um ícone que se conheceu há mais de cinquenta anos e não na vida real, mas no cinema. E com um detalhe importante: eu o conhecia, ele não sabia nada de mim. De repente, estamos juntos trocando gentilezas. Ele me sorri, eu lhe ofereço açúcar e tomamos o café em silêncio. Estou infantilmente mudo, mas quero lhe dizer algo. Faço um comentário qualquer sobre ‘Django’? Ou menciono o quanto, nos meus 30 e poucos anos, me impactou ‘Querelle’? Na pior das hipóteses falamos do tempo”, conta João Nunes, no livro “Paulínia: Uma História de Cinema”, sobre o breve encontro que teve com Franco Nero, após coletiva de imprensa com diretora e elenco do filme “A Memória Que Me Contam”, em 2011, no Polo Cinematográfico de Paulínia.
“Ele observa o céu azul de Paulínia-Campinas exposto aos nossos olhos através do vidro transparente do hall de um dos estúdios, luz estourada e límpida de uma manhã de primavera. Não diz nada; sorri apenas. Eu lhe digo que a maior parte do ano é assim. A conversa informal começa a engrenar quando algo nos distrai e interrompemos um diálogo breve sobre quase nada e nos dispersamos. Entretanto, insisto em olhá-lo à distância – não é todo dia que se ocupa o mesmo espaço e se toma cafezinho com Franco Nero”, completa João Nunes.
Maior colaborador do aclamado cineasta Quentin Tarantino, com papeis marcantes em “Cães de Aluguel” (1992) e nos dois volumes de “Kill Bill” (2003/2004), além de participação em “Os Oito Odiados” (2015) e uma ponta em “Era uma Vez em… Hollywood” (2019), o ator norte-americano Michael Madsen também apareceu em Paulínia, como um dos convidados especiais da última edição do festival, ocorrida em 2014.
Naquele ano, o tapete vermelho paulinense ainda contou com as presenças ilustres do ator americano Danny Glover, astro de “Máquina Mortífera” (1987), à época casado com a brasileira Eliane Cavalleiro, além da veterana atriz britânica Jacqueline Bisset e do diretor ítalo-americano Abel Ferrara, que haviam acabado de gravar juntos “Bem-Vindo a Nova York” (2014). O processo de internacionalização do festival estava em curso, mas acabou interrompido pelo anúncio do fim do bem-sucedido empreendimento, durante a gestão do prefeito José Pavan.
“Se Franco Nero era um ícone pra mim, Jacqueline Bisset era deusa. Vê-la me deixou muito emocionado. Aquele último ano mostrou o que teria sido o polo: com o valor do dólar de hoje, inúmeras produções internacionais estariam sendo filmadas aqui. Imagine os benefícios em todas as áreas disso para Paulínia e região”, imagina João Nunes, ao mesmo tempo em lamenta o fim do festival, na gestão do prefeito José Pavan.
Além de deixarem as suas marcas na Calçada da Fama de Paulínia, os atores Michael Madsen e Danny Glover participaram de um bate-papo com alunos da escola de animação Paulínia Stop Motion. “De 2008, ano em que foi inaugurado, até 2015, quando deixei o projeto, era a maior escola stop motion de animação do mundo”, orgulha-se o ex-coordenador Nilson Reis.
“Minhas lembranças do Festival de Cinema de Paulínia são muito boas. O contato com atores nacionais e internacionais me proporcionou experiências incríveis e inesquecíveis. Além da participação em coletivas de imprensa e lançamentos dos filmes nas telas do Teatro Municipal de Paulínia, cobri algumas aberturas do festival, quando um tapete vermelho com todo o glamour estilo Hollywood recebia atores, diretores de cinema e autoridades”, descreveu a jornalista Lázara Paes Leme.
“O evento era tão prestigiado que recebeu até atores internacionais como Danny Glover, Michael Madsen e Jacqueline Bisset, especialmente convidados para a cerimônia de premiação da derradeira edição”, relembra a jornalista Lázara Paes Leme, sobre o último suspiro do antigo e saudoso Festival de Cinema de Paulínia, que durou entre 2008 e 2014.
“Lamento que, desde 2014, não tenham sido mais realizadas edições do festival de cinema em Paulínia. Lamento ainda mais pelo abandono daquele tão importante espaço de produção de filmes. Espero que, muito em breve, alguma autoridade se sensibilize e retorne a agenda de produção de filmes no Polo Cinematográfico e exibições no Teatro Municipal de Paulínia. E que a classe artística se anime para também lutar pela retomada e reconquista daquele tão importante espaço de cultura”, torce Lázara.