Os debates religiosos em geral são evitados, postergados, até mesmo condenados, pois não costumam favorecer resultados construtivos e harmônicos. Por vezes, radicalizam posições ideológicas, crenças fanáticas e interpretações tendenciosas. Essas mesmas caraterísticas costumam, infelizmente, contaminar e deturpar outros temas polêmicos e muito importantes, como os ligados à política e às ideologias.
Estamos habituados, desde a infância, a ouvir o preceito: “Política, Religião e Futebol não se discutem.”
Diante desses assuntos árduos, quando dúvidas e questões se abrem e os interlocutores não conseguem aproveitar o contraditório, as defesas mais rápidas e banais que surgem são as que bloqueiam os ouvidos e inibem as cabeças. E o pior: aparecem as certezas e as convicções inabaláveis, de cada lado…
Aqueles que reforçam suas certezas querem se proteger ao máximo de nascerem dúvidas nas suas mentes. Se for um crente de estilo xiita, revigorará sua fé de modo cada vez mais rigoroso e fechado. E condenará o descrente ao mais sacrificado, merecido e penoso inferno. Se for um ateu militante, depreciará o religioso, ridicularizando-o, configurando-o como pessoa tola, infantilizada, que acredita em Papai Noel.
As polarizações afastam os interlocutores, cada lado se colocando em um extremo, tentando levar junto os que comungam ideias próximas, apartando-os em segmentos restritos.
Talvez o que pudesse ser uma esperança de modificar este panorama seja o conhecimento. Os homens sabemos que a ciência é muito poderosa, esclarecedora e determinante. Quando estudadas, fé e ciência são distinguidas especialmente pelas referências objetivas e subjetivas. A ciência sustenta-se no mundo concreto. A fé navega pelo universo abstrato.
É frequente aquele pôster que anuncia: “Fé – crer sem ver; Ciência – ver para crer”.
Quando também comparamos ciência e arte, as distinções são semelhantes. A ciência deve ser confirmada, replicada, para ser comprovada. A arte é única, representa tanto o concreto quanto o abstrato, mas não pode ser executada como no seu original – no máximo, pode ser copiada.
A ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, desde sua estreia (1870) em Milão, até agora, teve milhares de apresentações, todas com alguma peculiaridade. Neste maio, está em exibição no Teatro Municipal de São Paulo.
Quem consegue melhor aproveitar as graças oníricas da arte, seguir a bússola sistematizada da ciência e debater as expectativas recicláveis da fé, qualifica sua vida. No entanto, os que se reclusam na religião fechada e indiscutível podem ter mais dificuldades. Especialmente agora, com algumas descobertas novas e curiosas, pois elas sugerem alguma compreensão científica da crença.
Há muito sabemos intuitivamente que os pacientes melhoram quando se apoiam na própria fé ou na dos familiares e amigos. Agora, têm surgido estudos que comprovam o poder da oração, que ela pode ser um complemento eficaz para o tratamento médico.
E agora? Há um panorama contraditório de alto risco para a crença. O próprio conceito bíblico (Hebreus 11:1) nos diz que a fé é “a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.” Portanto, tudo o que for demonstrável, replicável, como qualquer fato científico prosaico, escapa do contexto da fé.
Não nos esqueçamos do principal: a fé como tal deve permanecer misteriosa. Desvendar o seu mistério é reduzi-la ao comum, ao decifrável, aos limites da objetividade. Assim, ela deixaria o contexto incomensurável do divino, restringindo-se ao mundinho dos humanos.
Seria necessário e indispensável que abríssemos um debate amplo e bem aberto às dúvidas (e certezas) que advirão. Existirão, provavelmente, até os que se servirão dessas novas constatações para dizer: “é lógico, a fé sempre foi uma verdade científica”…
Para mim, que sigo nas tentativas de ser médico e escritor, tenho uma sugestão para o debate. Sabemos, que, antes de mais nada, precisamos de amor e trabalho. Com razoável interação afetiva e alguma competência profissional, podemos melhor preencher nossos espaços, tempos e relacionamentos.
A orientação científica é óbvia, incontestável; o mergulho na arte nos sofistica com a estética e as ousadias. E, para a fé, tenho uma ideia para ser discutida: ela representaria a conexão das duas, da ciência e da arte.
Ou seja: Deus é a obra-prima da arte humana, que a fé tenta iluminar como sendo ciência. E aí fechamos a contradição insuperável: a fé só ilumina enquanto permanece no escuro.
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor