Um dos grandes desafios contemporâneos, além de garantir alimento para comunidades vulneráveis, é evitar o desperdício. Em tempos de pandemia e crise de renda e emprego, levar comida que seria descartada a quem precisa é um ato não são só de solidariedade. Trata-se de atitude cidadã e constitucional, afinal, a segurança alimentar é um direito. Campinas tem um trabalho louvável feito há mais de 35 anos e que, ao longo do tempo, foi se aperfeiçoando e se adaptando às circunstâncias logísticas, à organização da sociedade civil e aos protocolos de governança socioeconômica.
Trata-se do Instituto de Solidariedade para Programas de Alimentação (ISA), uma organização não-governamental que funciona dentro da Ceasa Campinas, na Rodovia D. Pedro I. A ONG surgiu para combater a fome e o desperdício, garantindo o aproveitamento do excedente de hortifrútis e incentivando as doações dos permissionários. O ISA foi fundado em 1984. Nasceu da percepção de um comerciante, o Zé Mineiro, que enxergava no desperdício de outrora uma oportunidade de levar alimento às famílias carentes.
Hoje, quem visita as dependências do ISA fica impressionado com a estrutura, logística e organização. São pelo menos 22 funcionários. Eles se dividem na coleta, seleção e distribuição dos alimentos. Há gestores, assistentes sociais, motoristas e pessoal administrativo. Uma engenharia montada para garantir alimento a populações de extrema vulnerabilidade social.
Neste projeto, vital durante a pandemia, os excedentes da comercialização dos produtos do Mercado de Hortifrútis da Ceasa viram alimento essencial para os carentes. São frutas, legumes e verduras doados por permissionários e estocados em câmaras frias para melhor aproveitamento.
Esses alimentos chegam ao ISA porque passaram pela recusa comercial do permissionário, em razão do tempo de estoque nos galpões ou por alguma avaria estética. Como esse alimento certamente seria rejeitado pelos mercados, os permissionários doam toneladas para o ISA, que seleciona, higieniza e distribui.
“São alimentos que não perderam o valor nutricional. E isso aqui não é uma ajuda, um favor. É um direito. Por isso, temos todo esse cuidado aqui”, afirma o assistente social Erik Campos, um dos funcionários do ISA e que até mareja os olhos quando lembra que Campinas, polo de tecnologia e referência em desenvolvimento econômico, tem bolsões de miséria e pobreza onde a fome está presente.
Impacto da pandemia
O cadastro convencional do ISA indica que aproximadamente 24 mil pessoas participam do programa. São famílias que passaram por um processo de seleção socioeconômica, que apresentaram documentos e que provaram atender aos critérios exigidos. Um deles é ter renda per capita de até R$ 200. Esse valor é definido após deduzir do orçamento geral da família as despesas essenciais, como aluguel, água e luz. Se, depois dessa equação, sobrar menos de R$ 200 por mês para cada um, a família entra no critério.
Erik Campos observa que houve aumento considerável da demanda por alimento no ISA com a pandemia. Dados de setembro último indicam um universo novo atendido de 10,2 mil famílias.
Ele adverte também que as pessoas que desejam ter acesso aos alimentos não devem se dirigir diretamente à Ceasa. Por várias razões: segurança, aglomeração e logística. Devem, antes, fazer um pré-contato no telefone (19) 3746-1020 para saber os critérios que devem seguir para entrar no cadastro.
“O número de famílias que passou a vir espontaneamente no ISA na pandemia cresceu. Foi gigantesco. Tinha gente que pegava dois, três ônibus e cruzava a cidade. Mas chegava com informações erradas. Então, é preciso falar antes conosco pelo telefone para que possamos orientá-los”, explica.
Quem é beneficiado
Além de famílias cadastradas, que atendem aos critérios de vulnerabilidade social, o ISA ajuda mais de 100 entidades assistenciais, incluindo ONGs, casas de longa permanência, hospitais beneficentes e creches. Pacientes em tratamento, que comprovem dificuldade de renda e que precisam complementar o seu cardápio nutricional, também são contemplados. O ISA faz ainda doações esporádicas para eventos abertos à comunidade de cunho social, mediante consulta prévia. Alimentos que eventualmente não são próprios para o consumo humano, depois de passar por todas as etapas de seleção, são destinados a pequenos produtores rurais da cidade, para uso animal.
Surpresas
Erik conta que a pandemia criou algumas situações dramáticas e inusitadas. Ele lembra de um dono de restaurante que, diante da iminência do fechamento do estabelecimento na fase mais severa da restrição, ligou para o ISA perguntando se podia doar um carregamento de cogumelos, afinal tudo se perderia. “Aceitamos e depois orientamos as famílias a consumir algo que eles não estavam acostumados”, lembra.
O assistente social recorda também de um casal que entrou no cadastro por queda abrupta de renda. O marido era chef de cozinha e a mulher, professora de Pilates. “Eles ficaram completamente sem trabalho. Tudo foi fechado”, comenta.
Logística
O esquema de distribuição dos alimentos atende a um rigoroso esquema previamente planejado. Os alimentos, depois de selecionados, são colocados em caixas de plástico. De segunda a sexta-feira, caminhões deixam o ISA seguindo itinerários definidos. As doações são levadas para comunidades carentes. A rede de distribuição conta com 35 pontos em Campinas, um em Sumaré e um em Valinhos. A quantidade já é calculada pelo número de famílias atendidos naquele bairro. Os cadastrados vão aos pontos de distribuição com sacolas e carrinhos para buscar os alimentos.
“Abobrinha e cenoura são complementares numa refeição. Mas para quem está em vulnerabilidade, muitas vezes é o único alimento”, reforça Erik Campos
Para Erik, quem imagina que o ISA trabalha com sobras e refugo, está enganado. “Isso aqui não é um resto. É uma doação. Os alimentos preservam o seu valor nutricional. Num planejamento de consumo semanal, dá para utilizar e faz a diferença na vida das pessoas”, conclui.
Com o trabalho do ISA, o Hora Campinas conclui nesta sexta-feira, 29 de outubro, a série “Fome e Solidariedade”.