Adoro novelas de época, e Nos Tempos do Imperador, da Globo, já me encantou por isso. Gosto de observar como as mulheres tiveram que batalhar para conquistar espaços na sociedade, e essa trama das seis mostra como era difícil nascer menina num mundo que privilegiava os meninos. Seria ótimo ver retratada em um folhetim a vida e obra de Júlia Lopes de Almeida, a primeira autora feminista do Brasil.
O atual trabalho histórico da Globo se passa no século 19 e aborda os acontecimentos de 14 anos da trajetória do Brasil. A novela começa em 1856, período conhecido como Segundo Reinado, e esteve sob o comando de Dom Pedro II (Selton Mello), que assumiu o poder do país aos 15 anos de idade, em 1840. A novela vai exibir tramas que alcançam os anos 1870.
Pela proximidade das datas, o nome de Júlia me vem sempre à mente. A autora morou em Campinas por muitos anos e escreveu em jornais locais.
Nascida no Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1862, seu pai era professor e médico, a mãe concertista, diplomada em piano, canto e composição. Uma das irmãs era poetisa, a outra pianista, e a terceira cantora lírica e declamadora.
O pai de Júlia, Valentim Silveira Lopes, que chegou a acolher o imperador D. Pedro II, após seu exílio, em Portugal (1889), defendia a educação e o livro como transformadores sociais. Apoiava a emancipação feminina, incentivando suas filhas para que se lançassem no mundo das letras. Ao assistir a novela das seis, constato que o imperador fazia o mesmo com as filhas Isabel e Leopoldina.
Por tudo isso, quando assisto a novela, imagino Júlia e sua família como personagens de um belo folhetim. A romancista é considerada como feminista pelo fato de defender a educação para as mulheres, o divórcio e o direito ao voto, além de refletir sobre o lugar da mulher no campo artístico.
Em 1869, ela se mudou para Campinas, onde passou o restante da infância e a juventude. Incentivada pelo pai, professor e médico, Júlia foi alfabetizada em casa, e iniciou sua carreira aos 19 anos como jornalista na Gazeta de Campinas. Dedicou-se ainda aos romances, novelas, contos, peças de teatro, ensaios e crônicas.
A autora editou obras entre Portugal, Brasil e França, de 1886 até 1934. Como escritora, constou da lista dos intelectuais que planejaram a fundação da Academia Brasileira de Letras. Porém, não fez parte da mesma por ser mulher. Em muitos artigos, Júlia Almeida assinou com os pseudônimos “A. Julinto” ou “Ecila Worms”. O mundo ainda era dos homens.
Em 1887, casou-se com o escritor português Filinto de Almeida, que era diretor da revista A Semana, editada no Rio de Janeiro, para qual colaborou por muitos anos. Escreveu para várias revistas e jornais do Rio e de São Paulo, como A Semana; O País, Ilustração Brasileira, A Mensageira, o influente Jornal do Commercio e outros.
Sua produção literária é composta por mais de 40 volumes, incluindo romances, contos, literatura infantil, teatro, jornalismo, crônicas e obras didáticas. Escreveu seu último romance, A Casa Verde, em 1932, com a colaboração com o marido.
Foi em 1886 que ela partiu para Lisboa, onde permaneceu por dois anos, quando, já casada com o poeta português Filinto de Almeida, retornou ao Brasil. Seu primeiro romance, Memórias de Marta, foi lançado em 1889, em São Paulo, onde o casal morou por quatro anos, em razão das atividades jornalísticas do marido. A partir de 1925, a família fixou residência por seis anos em Paris. Em 1934, oito dias após voltar de uma viagem à África, morreu, em sua cidade natal, vítima de malária, aos 72 anos.
Foi uma das fundadoras da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Desempenhou um importante papel progressista, especialmente em relação à educação feminina e às transformações do papel da mulher burguesa na mentalidade da Primeira República. Devido à sua grande aceitação e popularidade, assumiu a cadeira de número 26 da Academia Carioca de Letras.
“A mulher não nasceu só para o adorno, nasceu para a luta, para o amor e para o triunfo do mundo inteiro”
Julia Lopes de Almeida
Quando a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino promoveu o II Congresso Internacional Feminista, foi Júlia Lopes Almeida, considerada como a mulher de maior prestígio no meio cultural do país, quem proferiu o discurso de abertura. Era um momento significativo, já que as mulheres se mobilizavam para obter o direito de voto, o que se concretizaria três anos depois. Dentre outras atitudes em prol dos direitos femininos, Júlia ainda subiria em palanques reivindicando a construção de creches.
Associava a construção da identidade feminina ao desempenho dos papéis de mãe, esposa e administradora do lar. Segundo ela, uma mulher não poderia ser uma mãe perfeita se fosse ignorante ou fútil. Em sua obra, ela apresenta algumas ideias inovadoras referentes à profissionalização da mulher.
Escreveu: “Dizem que somos débeis, e chegam a convencer-nos, por sermos franzinas, pálidas ou tristes! Não se lembram de que tudo isso é efeito de uma educação mal feita – contra a qual devemos reagir a bem de nossos filhos -, passada no interior da casa, sem exercício, sem convivência, sem jogos, sem estudo bem ordenado, sem viagens, sem variedade, sem alegria enfim!“.
O talento não tem sexo, embora o mundo insista em vesti-lo de calças. Escritora de sucesso em sua época, ela acreditava na existência de uma desigualdade entre homens e mulheres no mundo das artes: para elas conseguirem na área a mesma posição que eles, tinham que se esforçar dez vezes mais.
Porém, ela observava que os tempos mudavam e, com ele, as mulheres cada vez mais se faziam presentes na literatura, na pintura, no teatro e na música. Seus escritos também lançam críticas ao casamento e as mulheres retratadas por Júlia raramente correspondem à figura da dona de casa e mãe exemplar, recatada e abnegada. Em A mulher e a arte, por exemplo, Júlia apresenta ao leitor um espaço que cada vez mais passava a ser ocupado pelas mulheres: o das artes.
Ela participou das reuniões para a formação da Academia Brasileira de Letras, mas ficou de fora, por ser mulher. Os fundadores optaram por manter a Academia exclusivamente masculina, da mesma forma que a Academia Francesa, que lhes servia de modelo. No lugar de Júlia Lopes entrou justamente o seu marido, Filinto de Almeida, que chegou a ser chamado de “acadêmico consorte”. O veto à participação de mulheres só terminou em 1977, com a eleição de Rachel de Queiroz para a cadeira nº 5.
A escritora foi mãe seis vezes, sendo que dois filhos morreram na primeira infância. Três seguiram seus passos como escritores: Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida. Dizia: “A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito“. Segundo a autora, “uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus deveres, marcará, funda, indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento da ordem, do estudo e do trabalho, de que tanto carecemos“.
A intelectual não achava que mulher deveria negar o papel de “esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo”, mas acreditava na melhora do desempenho deste papel. Refletia: “Em consciência, não há homens nem mulheres: há seres com iguais direitos naturais, mesmas fraquezas e iguais responsabilidades…Mas não há meio dos homens admitirem semelhantes verdades. Eles teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos – grandes para eles, para que seus pecados e faltas saiam e entrem sem deixar sinais; e extremamente miudinhas para nós“.
Além de amamentar cada filho por mais de um ano e ser mãe zelosa, Júlia era uma excelente dona de casa, cuidava pessoalmente do jardim, mantinha, com o marido, intensa vida social e cultural, e nunca parou de escrever.
Por tudo isso, a escritora deveria ser lembrada com um folhetim só pra ela. Mas, enquanto isso não acontece, eu sigo observando D.Pedro II (Selton Mello) com muito interesse, certa de que o verdadeiro imperador não deveria ter o charme do ator que o interpreta. Sou fã desse cara. E admiro tanto Júlia que adoraria tê-la conhecido.
Janete Trevisani é jornalista – [email protected]