Eram 11h30 e o motoboy Juninho aguardava em uma sombra, em frente ao número 45 da Rua Jupira Paulina da Silva, a última do Jardim Novo Flamboyant, em Campinas. Próximo a ele, um outro morador, sentado na calçada, dava garfadas generosas em um marmitex. De repente, lá de dentro, Kelly chama o sobrinho e, enquanto ele ajeitava as entregas na bolsa térmica, era orientado sobre o destino das refeições.
No fogão industrial, quatro panelas fervilhavam o cardápio do dia, e a cozinheira se apressava com os temperos finais. “Hoje deve sair um pouquinho menos, mas em média são umas 40 marmitas por dia”, calculou, enquanto ouvia ao celular o pedido de mais uma cliente.
Em uma cozinha improvisada no imóvel onde mora de aluguel com os dois filhos, de 10 e 14 anos, Kelly Cristina da Silva toca sozinha a rotina de mãe, empreendedora e provedora.
Aos 37 anos, ela dá continuidade a uma trajetória de trabalho iniciada na infância, ajudando a mãe Márcia em faxinas desde os 8 anos.
Nascida, criada e hoje ‘vencendo’ na própria comunidade, como diz, Kelly viu sua vida se transformar nos últimos anos. Se antes o foco era apenas garantir o sustento, hoje ela fala com orgulho sobre o quanto conseguiu evoluir e para onde quer chegar, a partir do momento em que investiu no próprio dom de cozinhar.
“Não é fácil”, confessa, enquanto mistura o feijão tão quente como aquele pequeno ambiente coberto com telhas finas. E logo emenda: “Eu sofri aqui, eu conquistei aqui e também estou vencendo aqui”.
De apenas uma marmita vendida no primeiro dia de negócio, agora Kelly dobra a equipe aos sábados para conseguir entregar mais de 80 refeições, muitas delas para além das ruas do Novo Flamboyant.

Capacitação e microcrédito abrem caminho para a transformação comunitária
Kelly, a família e alguns de seus clientes fazem parte de uma região com cerca de 3 mil habitantes, na histórica comunidade conhecida como Buraco do Sapo, região Leste de Campinas; local que há décadas enfrenta desafios estruturais e sociais. Apenas um terço das construções recebeu regularização fundiária — processo em contínua análise junto a Companhia de Habitação Popular de Campinas (Cohab).
Do ponto de vista socioeconômico, até poucos anos atrás quase metade dos moradores do Jardim Novo Flamboyant estava inscrita em programas de assistência social.
É nesse território onde Kelly, mãe solo e negra, representa o perfil de mais da metade de empreendedores periféricos, hoje em processo de capacitação e sendo incentivados financeiramente a manterem-se em seus negócios, e em suas próprias comunidades.
Dados do programa Empreende Campinas, desenvolvido pela Fundação FEAC com apoio de instituições públicas e privadas, mostram que entre 2022 e 2024 cerca de 2,8 mil empreendedores foram mapeados em diversas áreas de vulnerabilidade social.

Nesse período, mais de 1,4 mil planos de inclusão produtiva foram elaborados e, na primeira fase do programa, cerca de R$ 120 mil em microcréditos foram disponibilizados a mais de 50 empreendedores.
Esses números refletem o avanço do programa em diferentes regiões, onde quatro organizações da sociedade civil (OSCs), parceiras da FEAC, atuam como coexecutoras do Empreende Campinas.
Instituto Filhos amplia oportunidades e inspira histórias como a de Kelly
No Jardim Novo Flamboyant, onde Kelly e outras centenas de pessoas são assistidas, o Empreende é conduzido pelo Instituto Filhos Campinas – uma organização fundada em 2016 e que atua diretamente com moradores da região Leste e também do Campo Belo.

Ao longo dos últimos anos, como destaca a líder comunitária e coordenadora do instituto, Danielle Ferreira Theodoro, as ações de capacitação e inclusão produtiva ganharam cada vez mais força na comunidade, principalmente a partir da pandemia da Covid-19.
“Ajudamos muitas famílias durante a pandemia com alimentos, mas percebemos que a inclusão produtiva e a geração de renda poderiam transformar muito mais. A verdadeira mudança dentro de uma casa vem com a renda, é inevitável”, observa Danielle.
Começou em 2020, ainda como um projeto-piloto, a mobilização de mulheres da comunidade Buraco do Sapo a obterem ferramentas para transformarem seus pequenos negócios.
A etapa seguinte foi buscar apoio institucional junto à Fundação FEAC – momento em que o Instituto Filhos passou a integrar o projeto Tempo de Empreender, no início de 2021. Danielle recorda que em plena pandemia foram mobilizados 100 empreendedores, e os cursos eram realizados de forma on-line.

De 2022 a 2023 o Empreende Campinas já se estruturava em duas frentes de atuação: cursos de gestão de negócios e acesso facilitado ao microcrédito. Como parceiros, o Sebrae e o Senai ministraram cursos profissionalizantes nessas comunidades.
Kelly Cristina, por exemplo, passou por todo o processo de mentoria do Empreende.
Foi com a ajuda da Danielle – que também é da área de contabilidade – e também de alunos da PUC-Campinas (parceira do programa), que a cozinheira colocou no papel seu plano de negócios da Marmitaria da Kellinha.
Fruto desse processo, Kelly e outros nove empreendedores ligados ao instituto foram contemplados com um “capital semente” no valor de R$ 2 mil. A cozinheira logo investiu no fogão industrial e em alguns utensílios.

Atualmente, o programa conta com 500 participantes ativos e meta de chegar a 700 até o fim do ano. Nos próximos três anos, o objetivo é impactar 3 mil empreendedores, almeja o Instituto Filhos.
Danielle conta que os momentos mais marcantes do projeto são aqueles em que as empreendedoras recebem o “capital semente”. Muitas se emocionam, choram e revelam o quanto o gesto simboliza mais do que um apoio financeiro, e sim o reconhecimento de que alguém acredita nelas. Para a coordenadora, essa confiança tem um poder transformador, sobretudo em comunidades onde o apoio familiar ou social é limitado.
“Há uma questão de autoestima muito forte nesses territórios”, explica a gestora. “Algumas mulheres já chegam empoderadas, mas muitas ainda estão descobrindo sua própria força.”
“Eu já fiz o nome, tenho clientela. Agora quero um lugar bonito, com mesas para receber as pessoas. Mas tudo é no tempo certo”, diz Kelly, com um sorriso sereno.
📷 Gustavo Abdel/Hora Campinas


Um futuro com protagonismo comunitário
O Jardim Novo Flamboyant vem deixando para trás a imagem de uma comunidade isolada para se afirmar como um território vivo, em construção coletiva. Desde o ano passado, o bairro é o foco de uma iniciativa da Fundação FEAC voltada ao desenvolvimento territorial sustentável, um modelo de atuação que combina fortalecimento social, econômico, cultural e físico.
Segundo Rafael Moya, gerente de Desenvolvimento Territorial da FEAC, a proposta nasceu do reconhecimento daquele território como um espaço socialmente construído.
“Começar pelo capital social é o principal legado. Como é que emponderamos aquelas pessoas, fazendo-as evoluir politicamente e as transformar em sujeitas daquele processo de desenvolvimento? Começamos no ano passado um processo de mapeamento de lideranças comunitárias e montamos um comitê comunitário”, explica Moya.
A escolha do local, geograficamente próxima à Fundação FEAC, também está ligada à experiência positiva na região dos Amarais, onde mais de 15 lideranças seguem em diversas frentes para o desenvolvimento daquele território.

Em novembro deverá ser apresentado o Plano de Desenvolvimento Territorial do Jardim Novo Flamboyant. O documento, elaborado com participação direta dos moradores, dará diagnóstico detalhado de necessidades locais como regularização fundiária, infraestrutura, espaços públicos e oportunidades de geração de renda.
“Essa peça será apropriada pela comunidade, pelo poder público e por empresas que queiram investir ali. A ideia é que o plano seja um instrumento de transformação, com base em um processo construído coletivamente”. acrescenta o gerente de Desenvolvimento Territorial da FEAC.
O território também passa por mudanças estruturais, com a construção de novo bairro de alto padrão ao lado da comunidade. Para Moya, esse é um ponto crucial.
“Nós não queremos que o desenvolvimento expulse o Novo Flamboyant. Queremos que ele se integre. Historicamente, comunidades assim são cercadas por muros ou indiretamente expulsas. Nosso objetivo é o oposto, que se apropriem do processo e permaneçam em seu território, e para isso precisam de um plano de desenvolvimento para se fortalecerem naquela comunidade”, avalia.











