A sequência diária seria sem graça e banal para a maioria das pessoas, se a vida delas não fosse incentivada por expectativas e ocorrências excepcionais.
O parente enfermo não melhora com terapias convencionais. Lá vai a família à procura do cirurgião espiritual. A reputação de alguns desses milagrosos prossegue afetada por denúncias, condenações e prisões. Mesmo com o risco inerente, investir no sobrenatural é iniciativa aprovada pelo doente e familiares. Poder-se-ia consultar uma segunda opinião médica, por exemplo, mas é mais fácil ir atrás do milagre.
Profissionais de saúde e familiares tendem a acomodar-se em fases terminais dos pacientes, encerrando seus esforços, olhando-se nos olhos e sentenciando: “agora, só um milagre”…
O torcedor faz figa, põe no pescoço o colar da sorte, a mídia realça que tal jogador fez algo mágico. O apostador investe nos jogos de azar, as loterias prometem fortunas. Estamos cercados de sugestões fantásticas e supersticiosas, motivando os anseios por esses resultados extranaturais.
A vida natural, biológica, dos animais humanos, a rigor, é realmente medíocre. Nascemos, crescemos, evoluímos, adoecemos, progredimos, regredimos, involuímos e morremos. É a trajetória simples, convencional, do homem, seja ele de uma etnia supremacista ou desprivilegiada, um cantor de renome ou um desafinado no chuveiro, um sujeito feioso ou um modelo estético, um militar de carreira ou um servente de pedreiro, tenha muitas posses ou apenas uma velha bicicleta.
Cada um pode desenvolver sua vocação profissional, fazer tentativas de gratificar-se, escolher ideologias, explorar sua intelectualidade, qualificar sua existência, aprimorar-se de virtudes, exercer boa política, edificar um casal, uma família, relacionar-se com amor e erotismo. Outros tenderão ao fiasco geral, com resultados mínimos e frustrantes.
Teremos biografias de sucesso ou malogro, mas todas percorrerão um tempo de existência natural, sem milagres ou magias. É o decurso modesto da vida que termina em morte.
Podemos seguir este destino mortal sem recorrer ao sobrenatural e viver muitíssimo bem. Ou podemos aproveitar a fé religiosa, beneficiando-nos de sua força espiritual. Podemos acreditar na alma imortal, no Paraíso, no Nirvana.
A Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo) destaca frequentemente estudos sobre a relevância da espiritualidade na evolução das doenças.
Entre as crendices menores, limitadas a extravagâncias e veleidades, e as crenças maiores, que têm a sanção das religiões, não há limites. O alcance é divino, infinito.
Yuval Harari indica que a religião é universal e missionária.
Seja com a enorme abrangência da religião ou pelos caprichos e cismas individuais e de pequenos grupos, o que interessa é o sucesso do sobrenatural. Do amuleto folclórico à oração dogmática, o que conta é a glória misteriosa da fé. Então, vale a pena nos iludirmos, mantermos as quimeras?
A vaidade dos crentes demanda que eles sejam sempre reconhecidos em nível inteligente. Eles recorrem aos eufemismos e racionalizações – não admitem ser confundidos com crianças e tolos que acreditam em fadas, fantasmas e despachos.
A soberba dos descrentes exige menos deles – eles estão mais próximos da repetição fastidiosa. Estariam ainda mais libertos quanto mais humildemente reconhecessem que adorariam ter uma fé religiosa que os salvasse…
Um artista muito famoso como John Lennon prega a ausência de religião na canção ‘Imagine’. Um grande filósofo como F. Nietzsche reflete sobre a morte de Deus. Os fãs e leitores deleitam-se com esses trabalhos, mas não os assimilam existencialmente. As descrenças ficam para os ídolos… Os fãs continuam crentes…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.