As mulheres lutam contra a objetificação há décadas. Em 1968, surgiu nos Estados Unidos o Movimento de Libertação Feminina que, na época, se manifestou contra atitudes e ações que colocavam as mulheres em patamar de objeto, a exemplo dos concursos de misses. Mas, até hoje, a objetificação ainda faz parte do nosso cotidiano. Está na publicidade, nas músicas, em todo lugar. Entre as celebridades, quem reclama no momento é a Pocah, cantora que teve seu último clipe censurado no Youtube.
Não conhecia a funkeira, aliás, ela é uma ex-participante do BBB (Big Brother Brasil), e eu realmente não gosto do programa, mas outro dia a vi no Papo de Segunda, do GNT, como convidada da noite, para defender seu novo trabalho, que segundo ela é sinal de empoderamento.
A canção de Pocah fala de sexo oral, “sobre o prazer feminino”, defendeu a funkeira, alegando ter feito um trabalho “elegante”.
Cada um canta o que quer e mostra o que tem, mas precisa encarar as críticas, certo? A letra de Muito prazer é fraca e, cá entre nós, sabe quando você ouve e sente vergonha alheia? Eu senti. Mas a cantora afirmou: “Rebolo a raba, sou uma mulher livre, mas também inspiro milhares de mulheres”. Então tá. Os meninos do Papo de Segunda concordaram, e na minha opinião pareciam meio tímidos.
Na segunda parte do programa, liderado por Fábio Porchat, a funkeira mostrou seu outro lado: o de quem sofreu violência doméstica. Aconteceu há alguns anos, antes da filha de cinco antes nascer, quando foi agredida de todas as formas pelo parceiro. Nesse momento, ela prestou um serviço a quem assistia a atração: é preciso falar disso sempre, e daí ela foi empoderada.
Desconheço a trajetória de Pocah. Não sei se ela estudou, se leu bons livros, se fez ou faz terapia, mas entendi quando o Youtube classificou o clipe com o selo ‘maiores de 18’. Depois de alguns dias, o Muito Prazer foi liberado e a funkeira comemorou. A letra não tem conteúdo e não convence, ao contrário do discurso de seu lado “mulher forte”, após tanta violência sofrida.
A meu ver, a funkeira deveria refletir sobre isso: será que esse clipe veio para mostrar a liberdade que ela não tinha quando sofreu o trauma com o ex-parceiro? Pode ser. Ela só tem 26 anos, a vida começa agora, tomara que não de arrependa desse trabalho.
O que percebo quando ouço garotas como Pocah, sinceramente, é que falta informação, leitura, conhecimento.
Temo que as crianças de hoje cresçam confusas, com dificuldade de discernir objetificação de empoderamento. Já vi muitas meninas dançando em aniversários essas músicas sensuais que as erotizam de uma forma preocupante. Muito cedo pra isso.
A meu ver, para ser empoderada uma mulher precisa ter muito amor próprio. Essa sensualidade exagerada, com caras, bocas e muito bumbum balançando, me faz lembrar o que a autora francesa Virginie Despentes escreveu em seu livro Teoria King Kong: “É uma maneira de se desculpar, de tranquilizar os homens: ‘Olha como sou boazuda, apesar da minha autonomia, da minha inteligência, da minha cultura, na realidade eu quero ser desejada por você’. Lembrando que Virginie utiliza sua experiência como ex-stripper para escrever.
Mas nem sempre a mulher sensual causa essa espécie de desconforto que Pocah me causou na primeira parte do Papo de Segunda. Olha o caso da atriz Paolla Oliveira, que no Super Dança dos Famosos, da Globo, dançou um funk nota dez e foi muito elogiada pelo público. Depois da apresentação, ela afirmou, nas redes sociais, ter se sentido desconfortável com os comentários machistas do apresentador Thiago Leifert e do jurado André Marques.
Na ocasião, os dois ficaram desconcertados com a beleza e sensualidade da atriz após ela dar um show ao som de Rainha da Favela, de Ludmilla. Em tom machista, disseram ter ficado “com calor”.
A atriz desempenhou sua versão bailarina de forma muito competente. Não se comportou como uma mulher objeto, muito pelo contrário. Foi determinada, destemida. Olha como o fio é tênue.
Empoderamento e objetificação podem, sim, ser confundidos. Acho que Pocah não tem muito claro o que significa uma coisa e outra, ao contrário da atriz Maria Joana, que fez um discurso sobre respeito às mulheres depois de sua performance de funk na Super Dança dos Famosos, usando um casaco para esconder seu corpo depois da apresentação. A dançarina, que usava um maiô com a frase “Meu Corpo, Minhas Regras”, comentou que gostaria de não ter essa reação: “Sim, eu fico com vergonha e vou pegar o casaco, mas eu gostaria que chegasse um momento que eu não tivesse mais isso, sabe? “.
Entendo perfeitamente, da mesma forma que aplaudo as atletas das Olimpíadas de Tóquio que reclamaram de uniformes desconfortáveis. A equipe alemã de ginástica competiu com macacões que cobrem as pernas.
De acordo com as atletas, o objetivo é combater a sexualização no esporte. Afinal, a modalidade é famosa por escândalos de abuso sexual. Recentemente, o ex-médico da equipe dos Estados Unidos, Larry Nassar, foi condenado a 175 anos de prisão por abusar de ginastas durante décadas.
A terceira atriz que dançou funk com desenvoltura na Super Dança foi Dandara Mariana. A atriz obteve nota máxima ao se esmerar em uma coreografia inspirada na medalhista olímpica Rebeca Andrade. Simplesmente deslumbrante. E empoderada.
Pessoa como um objeto
O termo objetificação foi criado no início da década de 70 e descreve o ato de analisar uma pessoa como se fosse um objeto, sem levar em conta o seu lado emocional. No dicionário, a palavra objetificação é definida como “processo que atribui ao ser humano a natureza de um objeto material, tratando-o como um objeto ou coisa; coisificação”. É como se apenas a aparência fosse uma característica importante.
Nos programas de auditório, as bailarinas costumam fazer parte da atração para agradar ao público masculino. Não há homens dançando, só mulheres. No Chacrinha já era assim, no Bolinha, depois no Faustão, no no Silvio Santos… As mulheres assumem papéis de submissão ao olhar masculino.
Nos comerciais de cerveja, as divas mostram corpos esculturais e não pronunciam uma palavra, se bem que isso mudou nas últimas temporadas, pelo fato de alguns anúncios terem sido suspensos após denúncias envolvendo machismo e sexualização desnecessária do corpo feminino. Embora hoje já existam casos de objetificação corporal e sexual de homens, ainda predomina a objetificação da figura feminina.
Combater a objetificação é mostrar para as mulheres que elas são seres completos, muito mais do que objetos. O primeiro passo para isso é identificar atitudes que reforçam essa cultura e combatê-las.
Ainda bem que no Brasil há Ongs (Organizações Não Governamentais) que empoderam meninas. A Plan International Brasil e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), por exemplo, lançaram recentemente um programa de atividades chamado “Minhas Escolhas”, para que garotas de bairros periféricos de São Paulo aprimorem conhecimentos sobre seus direitos. A ideia é que essas adolescentes sejam líderes multiplicadoras que disseminem os conhecimentos adquiridos para pelo menos 800 adolescentes, entre meninas e meninos.
São vários os desafios que afetam o desenvolvimento pleno das adolescentes nos centros urbanos. Um exemplo é a gravidez na adolescência. No Brasil, 53 a cada 1 mil meninas se tornam mães enquanto estão na faixa entre 15 e 19 anos. A estatística, divulgada recentemente pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), no relatório sobre a Situação da População Mundial 2020, coloca o País bem acima da média mundial, que é de 41 a cada 1 mil meninas.
Em São Paulo, a desigualdade dentro da cidade chama atenção.
A chance de um bebê ter uma mãe adolescente é 47 vezes maior em Parelheiros do que em Moema, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde de 2018.
Também em 2018, quase 1.500 meninas foram vítimas de violência sexual na cidade de São Paulo. Mais de 2/3 de todas as vítimas de casos registrados de violência sexual tinham até 18 anos, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado.
Diante dos desafios, a iniciativa se propõe a sensibilizar as próprias adolescentes e jovens sobre seus direitos por meio de uma trilha formativa de empoderamento feminino. Dentre os temas abordados estão: ser assertiva, ter consciência de gênero, ter autoconfiança corporal, estar informada sobre saúde sexual e reprodutiva, desfrutar de direitos sexuais e reprodutivos com responsabilidade, viver livre da violência baseada em gênero, ser economicamente empoderada, e dialogar sobre gênero com meninos.
Quanto mais informações receberem, mais essas meninas vão chegar à vida adulta aptas a fazer escolhas certeiras, sem se sentirem acuadas ou usadas. Aos coordenadores do projeto, parabéns!
Janete Trevisani é jornalista – [email protected]