Vou começar repetindo o que escreveu Julio Cortázar (1914-1984) em “Morelliana”, Capítulo 71 do “Jogo da Amarelinha”, a sua obra-prima de 1963:
__ Além de tudo, é preciso ser imbecil, ser poeta, é preciso ficar a ver navios para perder mais de cinco minutos com estas nostalgias perfeitamente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-de-ciência, cada novo satélite artificial, hormônio ou reator atômico esmagam um pouco mais estas enganosas esperanças. O reino será de matéria plástica, não resta dúvida.
Impossível não reiterar essas palavras nesse momento histórico entre duas reuniões internacionais fundamentais para o futuro do planeta: o encontro encerrado a 19 de novembro em Nairobi, Quênia, que discutiu um tratado global sobre os plásticos, e a Conferência do Clima, COP-28, que começa neste dia 30 em Dubai, Emirados Árabes Unidos.
Os dois eventos têm íntima ligação entre si. Esta foi a terceira grande reunião promovida pelas Nações Unidas visando um tratado internacional sobre os plásticos, cuja produção e uso cada vez maiores e, sobretudo, descarte inadequado representam hoje uma das maiores ameaças à vida no planeta.
As estimativas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) são de que a produção mundial de plásticos atingiu 460 milhões de toneladas por ano em 2019, o dobro do que foi fabricado em 2000. Se a produção continuar no ritmo atual, segundo a OCDE, esses números serão triplicados até 2050.
Seria uma catástrofe planetária, com mais e mais plásticos sendo por exemplo despejados no mar. Atualmente, a poluição por microplástico já representa um dos maiores, senão o maior, motor de destruição da vida marinha. E já se multiplicam os estudos comprovando que os microplásticos estão sendo incorporados à cadeia alimentar, com graves riscos para a saúde humana.
Mas a produção desenfreada de plástico também representa um forte agravante para a emergência climática em curso. A maior parte dos plásticos é fabricada com combustíveis fósseis como o petróleo. Os mesmos fósseis que são os maiores responsáveis pelas temperaturas cada vez maiores e consequentes mudanças climáticas que afetam cada vez mais forte todas as regiões da nossa casa comum de todos, a bela Terra que levou bilhões de anos para alcançar a viabilidade da vida humana mas que está em risco justamente pelas ações humanas.
Pois em Nairobi, como se previa, o conjunto dos países não chegou a um consenso sobre a imperativa redução significativa de produção de plásticos. Cientistas e ambientalistas defendem que essa produção deve ser reduzida em 75% até 2040, como forma de contribuição para os esforços globais de enfrentamento das mudanças climáticas.
Entretanto, o que se viu na capital queniana, onde fica a sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), foi um lobby declarado dos grandes produtores de plásticos e, claro, das grandes empresas de combustíveis fósseis. Como resultado, nenhuma decisão concreta sobre a necessidade de redução da produção dos plásticos. Essa decisão, no marco de um Tratado Internacional sobre Plásticos, ficou para abril de 2024, na quarta e última reunião prevista para discutir o tema, no Canadá.
Pelo rumo das negociações, é improvável que ocorra uma deliberação no Canadá nos termos defendidos por cientistas e ambientalistas. Os interesses envolvidos são gigantescos e tudo indica que o setor dos plásticos continuará empurrando uma definição para outro momento.
Essa é a mesma expectativa para a COP-28 de Dubai. O foco central da reunião será a pressão de países em desenvolvimento e grupos de cientistas e ambientalistas para que seja definido um cronograma muito claro para a substituição dos fósseis por fontes renováveis de energia. Essa posição chega fortalecida por uma deliberação que acaba de ser aprovada, nesse sentido, pelo Parlamento Europeu. Por grande maioria de votos, os eurodeputados também apelaram para que sejam eliminados todos os subsídios aos fósseis até 2025.
A realização da COP-28 em Dubai, grande produtora de petróleo, é um indício de que poucos avanços serão alcançados na Conferência, se é que acontecerão.
O absurdo da realização da COP-28 nos Emirados Árabes Unidos ficou ainda mais evidente com a recém descoberta, divulgada pelo jornal inglês The Guardian, de documentos revelando que o país anfitrião da Conferência do Clima sinalizou com acordos petrolíferos com outros países para os próximos anos, ao mesmo tempo em que promovia os encontros preliminares sobre negociações climáticas. Os documentos foram obtidos pelo Center for Climate Reporting. O presidente da COP-28 será o sultão Al Jaber, presidente da Adnoc, a empresa petrolífera de Dubai e também da Masdar, empresa de energia renovável dos Emirados Árabes Unidos.
Como ressaltou Cortázar há seis décadas, devemos temer cada vez que se reúnem os gerentes internacionais. Para evitar que vivamos em um reino de matéria plástica, provavelmente derretida (mas não destruída) pelo superaquecimento global, só mesmo com um intenso e permanente movimento de cidadania planetária.
Movimento que poderia buscar inspiração na campanha brasileira das Diretas-Já, iniciada há 40 anos e que levou milhões às ruas. As Diretas-Já não foram vitoriosas no sentido de obter já em 1984 as eleições diretas para presidente da República, mas criaram uma dinâmica social que resultou em importantes avanços, consolidados na Constituição de 5 de outubro de 1988. Sem isso o Brasil talvez estivesse na barbárie hoje.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]