O vereador de Campinas Nelson Hossri protocolou projeto de lei que proíbe atletas transgêneros de defenderem equipes de Campinas, qualquer que seja a modalidade, em eventos esportivos. O PL contraria diretrizes do Comitê Olímpico Internacional (COI), entidade máxima do esporte, sobre identidade de gênero e inclusão. Também causa indignação entre representantes da comunidade LGBTQI+ e é contestado juridicamente por especialistas.
Em defesa de seu projeto de lei, Nelson Hossri afirma que por mais que se sintam mulheres, atletas trans têm vantagens em diversos aspectos, como estrutura corporal, força, impulsão, capacidade pulmonar e cardíaca. “Não à toa, homens biológicos esportistas que não brilhavam na sua modalidade, hoje são campeões e até batem recordes no feminino”, afirma o vereador ao site da Câmara de Campinas.
“Em outros países, mulheres estão perdendo bolsas, patrocínios e contratos em razão disso. E se você contestar vira alvo de críticas e agressões verbais da comunidade LGBT. Por isso quero acabar com o mal pela raiz”, acrescenta.
O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) respondeu ao Hora Campinas que “o esporte é inclusivo em sua essência”. E acrescentou: “O Comitê Olímpico Internacional estabelece que cada Federação Internacional, em sua especificidade, deve determinar quais são as condições para a participação de atletas transgêneros nos Jogos e o Comitê Olímpico do Brasil segue essa orientação. O COB acredita que o debate é fundamental para a evolução em qualquer tema. Essa é uma questão que está colocada sobre a mesa e que o Movimento Olímpico mundial precisa debater abertamente”, informa.
O COI determinou que as cabe às entidades nacionais representativas de cada modalidade decidirem sobre as regras e desenvolver seus próprios critérios de elegibilidade e participação de transgêneros. Em documento oficial, diz:
“Reconhecemos a necessidade de garantir que todos, independentemente de sua identidade de gênero ou variações de sexo, possam praticar esportes em um ambiente seguro e livre de assédio”.
A CBV se tornou a primeira Confederação esportiva do Brasil a adotar uma política interna de promoção da equidade de gênero e valorização da diversidade. A ponteira Tiffany Abreu foi a primeira mulher transexual a disputar a Superliga feminina.
Por outro lado, a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) anunciou que mulheres transgênero estão proibidas de participar de eventos internacionais na categoria feminina. Já a Federação Internacional de Natação (Fina) impõe restrições e não proibições. A questão segue em debate por especialistas esportivos e da área médica e fisiológica e está longe do consenso.
O que dizem os advogados
Leonardo Andreotti, advogado especializado em Direito Desportivo Internacional, lembra que o tema da participação de transgêneros em competições esportivas é sensível e vem sendo recentemente debatido e regulado pelas federações desportivas internacionais, a exemplo da World Aquatics e da IAAF.
“Discute-se de um lado o aspecto inclusivo do esporte, de outro os argumentos que indicam alegado desequilíbrio físico nestas circunstâncias, colocando em dúvida o equilíbrio técnico e competitivo”, observa o advogado.
Andreotti destaca que o fato é que, do ponto de vista regulatório, a caneta está com as entidades desportivas, a exemplo das federações e confederações. E do ponto de vista jurídico, o PL do vereador Nelson Hossri não tem base legal.
“Independente da intenção, e sem tecer qualquer juízo de valor ao seu objeto, um Projeto de Lei que vise limitar a participação e elegibilidade em competições esportivas encontra claro vício de constitucionalidade, por contrariar o artigo 217 da Constituição Federal, que garante autonomia às entidades dirigentes do esporte nacional”, especifica.
O advogado João Felipe Artioli, especialista em direito desportivo, reforça que cabe às entidades esportivas o dever de decidir se o sexo biológico deve ser o único critério definidor do gênero dos competidores.
“Esse projeto de lei de Campinas acabaria ferindo tanto a constituição quanto outras resoluções, como as da ONU e Unesco, das quais o Brasil é signatário e que tratam sobre essa questão da autonomia. A rigor, sem entrar no mérito de transgêneros no esporte, uma lei que tem esse tipo de definição, juridicamente falando, nasceria inconstitucional. O artigo 217, inciso 1, da constituição garante autonomia das entidades esportivas representativas quanto à organização e funcionamento”, confirma.
Ponto de vista
Artur Cintra, 26 anos, psicólogo e jogador de futsal do Pogonas, primeiro time de Campinas e do interior do estado de pessoas trans, classifica o PL de Nelson Hossri como um ato de “pura transfobia e preconceito”. Artur, que também foi voluntário do Laboratório de Gênero da Unicamp, defende que a qualidade dos atletas não está ligada ao sexo biológico e sim a seu potencial, o que envolve capacidade, altura, força e talento.
“Dentro de um time feminino, há atletas que se destacam mais do que outros. Todos têm o mesmo gênero, mas uns são mais talentosos e têm maior potencial que outros”.
A transfobia também foi citada por Tiago Miguel Pires de Abreu, diretor administrativo do Pogonas. “Esse projeto é um retrocesso que não leva em consideração a ciência, as evidências e as discussões das entidades esportivas envolvidas. Vai de encontro a tudo que foi falado e discutido até o momento com base científica”.
O Projeto de Lei
O PL de Hossri foi protocolado e, para chegar ao plenário, precisará antes ser aprovado pelas comissões Constituição e Legalidade e Esportes.
Em abril de 2019, o deputado estadual Altair Moraes (PRB) conseguiu levar à votação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) um PL que estabelecia o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo.
Após quase dois anos de tentativas de votação e seguidos adiamentos obtidos por opositores, o PL de Moraes sucumbiu ao parecer desfavorável da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.