Ouvir a comunidade, respeitar suas necessidades e despertar seu pertencimento territorial foram ações primordiais para poder mudar a realidade de uma das regiões mais estigmatizadas de Campinas.
No Jardim São Marcos, região Norte da metrópole, metros quadrados de lixo e entulho que ocupavam um grande terreno às margens do Córrego da Lagoa, próximo a Rodovia Dom Pedro I (SP-65), transformaram-se em vida, lazer e esperança a milhares de moradores.
Dos relatos de Maria do Socorro, seo Alberto, dona Benedita e de tantos outros que estão diretamente ligados ao projeto de recuperação daquela região, é possível visualizar os bons resultados que a implantação de uma praça – com quadra de areia, brinquedos, calçamento, iluminação e plantio de árvores – provocaram no convívio e na rotina daquela comunidade, em tão pouco tempo.
A reportagem do Hora Campinas esteve em visita àquela praça, localizada no final da Rua Dezoito, na companhia de alguns participantes da I Semana de Desenvolvimento Territorial e Transformação Social, promovido pela Fundação FEAC entre os dias 29 de outubro e 1º de novembro.
Conversando com os moradores, a maioria deles compreende se tratar de um processo de mudança contínuo naquela região. Isto porque em abril desse ano, Prefeitura de Campinas e Fundação FEAC firmaram publicamente um compromisso de transformar quatro quilômetros da margem do Córrego da Lagoa em um grande parque linear para convivência da comunidade.
O anúncio, inclusive, ocorreu na inauguração da 1ª etapa do projeto ‘Desenvolve Amarais’ – de iniciativa da Fundação -, com a entrega da praça e as melhorias ocorridas naquele ponto do São Marcos.
A data foi um marco para a FEAC, pois celebrava naquele 27 de abril seus 60 anos de existência, diante de centenas de moradores da região dos Amarais, entusiasmados com o novo equipamento público e as novidades que se avizinham na região.
A praça recebeu recursos da própria fundação e de empresas que haviam firmado contrapartidas com o município, através de termos de compromissos ambientais (TCA). Do projeto-piloto da praça de convívio, agora a FEAC custeia o masterplan do projeto arquitetônico do Parque Linear do Córrego da Lagoa.
Ainda em fase de escuta com a comunidade e de troca de informações principalmente com a Secretaria Municipal do Clima, Meio Ambiente e Sustentabilidade de Campinas (Seclimas), o parque deverá beneficiar os bairros Jardim São Marcos, Santa Mônica, Jardim Campineiro, Vila Esperança e adjacências. E assim que for finalizado, o projeto será doado para a Prefeitura iniciar todo o processo administrativo até a sua implantação, em etapas.
Segundo os responsáveis pela proposta, a área do Córrego da Lagoa, onde vivem cerca de 20 mil pessoas, passou por marcantes transformações territoriais, de rural para urbana, nas últimas décadas.
A população foi crescendo vertiginosamente e o processo de urbanização intensificou a degradação ambiental, com efeitos como desaparecimento de lagoas, poluição de riachos e desmatamento. Dessa forma, surge uma grande necessidade de recuperação do verde em toda aquela extensão.
‘RELÍQUIA’ PRESERVADA
“Essa praça foi uma verdadeira Graça de Deus, feita pelas mãos de anjos, para substituir tudo o que era isso aqui”. A genuína gratidão nas palavras de Maria do Socorro Souza revela de imediato o quanto a transformação daquela área impactou sua vida.
Aos 73 anos, 41 deles vivendo no São Marcos, ela se recorda do período em que o terreno era tomado por construções irregulares, com forte presença do tráfico de drogas. Depois desse período, quando as famílias foram retiradas da área, começou, então, o processo de despejo de lixo e entulho às margens do córrego, que perdurou por anos.
“O cheiro era insuportável. A quantidade de bicho que invadia minha casa era enorme. Era um tempo difícil para todos que viviam aqui perto”. Sua casa fica a poucos metros da nova praça. “Agora eu tenho uma relíquia ao lado de casa”, sorri.
A recuperação da área também despertou em Maria do Socorro, no seu vizinho Alberto da Silva Viana e em demais moradores, a necessidade de manter conservada a tal ‘relíquia’ e, além disso, ampliar os benefícios para áreas vizinhas da praça. Houve então uma espécie de “ocupação estratégica” para evitar que a região volte a ser degradada.
Das mãos da aposentada foram plantadas mudas de pitanga, abacate, babosa, pitaia e outras espécies com propriedades medicinais. Já Alberto conta que da sua parte foram mais de 50 mudas de espécies como laranja, acerola, ipê e tantas outras plantas ornamentais.
Além da vegetação, Alberto também construiu uma pequena churrasqueira e uma mesa de concreto, posicionadas sob a sombra de uma grande árvore. Enquanto as crianças brincam na praça, os adultos confraternizam-se ali ao lado.
“Agora a gente fica de olho diariamente para ver se tem alguém jogando entulho aqui no entorno. Alguns ainda arriscam, mas já melhorou muito a consciência das pessoas”, avalia Alberto, de 55 anos.
TÁTICAS DE PERTENCIMENTO
A iniciativa de moradores como Alberto e Maria do Socorro é fruto do que os especialistas chamam de um “espaço indutor de desenvolvimento”. Através de uma praça, moradores ao redor começam a se mobilizar para, então, ampliar as melhorias da região.
“São pequenas intervenções táticas de urbanismo que fazem com que aumente a autoestima das pessoas, e que as fazem querer melhorar outras partes daquele lugar”.
A explicação é de Rafael Moya, gerente de Desenvolvimento Territorial da Fundação FEAC, que está desde janeiro à frente de projetos que promovam transformação social em territórios vulneráveis.
Ao lado de um muro grafitado com figuras da natureza, em frente à praça, Moya exemplificou ao Hora Campinas como uma simples intervenção amplifica o pertencimento das pessoas com o território.
“Depois que houve o grafite nessa casa, a família da esquina nos procurou para oferecer o muro da residência para os artistas locais. Agora contempla toda uma paisagem, pois as pessoas começam a se animar, a se empoderar”, observa o especialista.
Sobre a praça, em si, Moya a considera uma “inspiração” para que demais parceiros e outras pessoas que não estejam diretamente ligadas ao projeto do Desenvolve Amarais, possam proporcionar experiência semelhante a determinado território.
“Desenvolvimento territorial não acontece rapidamente, pois se trata de estratégia de combate à vulnerabilidade de um determinado local. Um território aprende com o outro, e a ideia de projetos espelhos ajuda a sistematizar o conhecimento, o que é fundamental para a FEAC”, disse. Atualmente, a fundação trabalha também com a comunidade do Novo Flamboyant.
REFLEXOS POSITIVOS
A escolha do São Marcos como território-piloto da FEAC ocorreu devido a uma série de fatores. Primeiro porque a região é fortemente amparada por uma rede de organizações da sociedade civil (OSC) e lideranças comunitárias, que historicamente desenvolvem importantes papéis sociais no complexo de bairros dos Amarais.
Também porque se tratava de um território relativamente pequeno para iniciar a intervenção, sem necessidade de remoção de moradias, segundo explicação do gerente de Desenvolvimento Territorial.
“Viemos a uma área estigmatizada, de um território já estigmatizado. Aqui, fizemos em parceria com a Prefeitura a limpeza da área e uma consultoria nos auxiliou com o processo de escuta da comunidade e o desenho da praça”, recorda Moya.
Em um local onde no passado o setor municipal de serviços públicos fazia a remoção de até 10 caminhões de lixo e entulho quase semanalmente, após a implantação da praça a manutenção básica de corte de grama, pintura e outros pequenos reparos na redondeza ‘aliviou’ a demanda da Administração Regional 4 (AR4), responsável por 22 bairros de Campinas.
A constatação é feita pelo próprio administrador da AR4, Grinaldo Pereira da Rocha, que se recorda sobre a quantidade de reclamação que recebia diariamente dos moradores, por conta do descarte irregular de lixo na beira do córrego.
“Com esse trabalho que a FEAC fez o lugar se transformou. Ali era uma escuridão, e os vizinhos reclamava tanto do aparecimento constante de cobras, ratos e outros bichos, como do pessoal que ficava usando droga naquele lugar. Agora ficou limpinho. A noite ficou a coisa mais linda, com tudo iluminado e a molecada jogando bola”, relatou.
Rocha frisa que ao longo do Córrego da Lagoa ainda há diversos pontos de descarte de lixo, mas que com a implantação de um parque linear, muito ainda há de melhorar.
A iluminação da praça foi outro importante ganho naquela localidade. Por aquele trecho, ao lado da praça, passam diariamente cerca de duas mil pessoas que vão trabalhar na Centrais de Abastecimento de Campinas (Ceasa) e em redes de atacado às margens da Dom Pedro I.
Grande parte faz uso de bicicletas, e segundo os moradores, por conta da escuridão do lugar no passado, as pessoas tinham muito receio em passar pelo local. “A sensação de segurança aumentou em 80%”, acredita o morador Alberto Viana.
EPIDEMIA MINIMIZADA
Dentre todos os impactos positivos que a transformação da área proporcionou aos moradores da região, os reflexos na saúde foram sentidos ao longo da pior epidemia de dengue que Campinas já enfrentou, em 2024.
Com mais de 120 mil casos confirmados e 77 mortes registradas até o final de outubro em toda a cidade, de acordo com o Painel Interativo de Arboviroses da Secretaria de Saúde de Campinas, o Jardim São Marcos aparece entre os dez bairros com os menores registros da doença, e sem nenhuma morte confirmada até o momento.
Essa realidade foi completamente diferente em 2015 – ano do último recorde da doença na metrópole, com 65 mil casos e 22 óbitos.
Naquele ano, o São Marcos registrou 1.887 casos de dengue e encabeçou a lista de bairros com maior transmissão da doença.
No comparativo com 2024, houve uma queda de 50% dos casos: até outubro o bairro teve 961 registros confirmados de dengue. E a limpeza daquela área nas margens do córrego e campanhas de conscientização estão entre os principais motivos para a redução da doença, avalia o administrador regional Grinaldo Pereira.
INSPIRAR NOVAS AÇÕES
Um dia antes de realizar a aula magna no auditório da PUC-Campinas para centenas de participantes da 1ª Semana de Desenvolvimento Territorial e Transformação Social, Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura Cidadã e Desenvolvimento Social de Medellín, na Colômbia, e referência mundial em urbanismo social, visitou a praça do Córrego da Lagoa, e se emocionou com o que viu.
Além desse sentimento espontâneo, transmitiu durante mais de uma hora quais medidas intersetoriais foram adotadas em Medellín, que fizeram a segunda maior cidade colombiana abandonar o estigma de uma das mais violentas nos anos 1990, até se tornar uma metrópole vibrante, segura e voltada para as pessoas.
Seu trabalho foi fundamentado no desenvolvimento através da educação e da cultura, com destaque para os parques-bibliotecas, que desempenharam um papel crucial nessa transformação social.
Durante sua fala, Melguizo destacou a necessidade de reconhecer as histórias de resiliência nas comunidades, afirmando que “as pessoas constroem verdadeiras epopeias diárias” que precisam ser visibilizadas para gerar reconhecimento e inspirar novas ações. Segundo ele, comunicar o “porquê” e o “para quê” das iniciativas é essencial para promover engajamento e significado no contexto comunitário.
O professor de Gestão Pública também ressaltou o papel de OSCs, governos e empresas na construção de uma comunicação pedagógica que valorize essas histórias e torne os territórios protagonistas de suas próprias mudanças.
CONSELHO REPRESENTATIVO
Outro importante passo dado pelo Desenvolve Amarais foi a criação de um Comitê Comunitário, composto por dez membros daquela região. O objetivo, segundo Rafael Moya, é favorecer o diálogo e o debate de forma organizada entre os moradores da região e suas lideranças sobre as necessidades daquele território e assim elencar as prioridades. O comitê foi oficializado em julho e faz parte da terceira etapa do projeto.
As reuniões são realizadas em uma sala totalmente reformada do Grupo Primavera, uma das organizações com maior representatividade na região do São Marcos.
“Fizemos o mapeamento de lideranças comunitárias e organizações populares formais ou informais no território e promovemos oficinas para propor a ideia do comitê, que agora, instalado, vai passar pelos processos de depuração, fortalecimento e consolidação”, explicou Moya.
Um segundo passo é a criação do Comitê de Governança, que terá membros do Comitê Comunitário e também contará com a participação de representantes de OSCs do território, empresas, órgãos dos governos federal, estadual e municipal, e de universidades como a Unicamp e a PUC-Campinas.
A líder comunitária Benedita Rosa Santana e Silva, a dona Ditinha, 65 anos, integrante do comitê, recepcionou os visitantes na praça do Córrego da Lagoa. Há quase 50 anos vivendo no São Marcos, deu seu testemunho sobre as lutas e as mudanças positivas que a região vem conquistando.
“A gente esperava muito por essa transformação. Estamos muito carentes de área de lazer no bairro. Esse projeto é o começo de muita transformação que eu já tenho certeza que deu certo”, disse na presença de todos os participantes da vista técnica.
Atenta aos relatos de Benedita e demais membros da FEAC, a psicóloga Aldvan Figueiredo, 52, participante da Semana de Desenvolvimento Territorial e Transformação Social também observava contemplativa a natureza que cercava a roda de conversa na manhã daquela sexta-feira.
“Estar nesse local foi um resgate da minha infância, quando a gente se sentava embaixo de um Flamboyant para conversar. Me trouxe um resgate de como é importante o todo. E sabemos que para estudar território a gente tem que estudar o povo, tem que estudar a cultura, a sua história”, ensina.