O surgimento de bactérias patogênicas que não podem ser eficazmente tratadas com os medicamentos existentes foi priorizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma das dez principais ameaças globais à saúde pública que a humanidade enfrenta no momento e poderá piorar em futuro próximo.
No ano de 2022 em que pude colaborar com o Governo do Estado de São Paulo como Secretário Executivo da Secretaria de Ciência, Pesquisa e desenvolvimento em Saúde, um dos temas abordados, discutidos e com relatório orientador à saúde Pública foi ligado à investigação e diretrizes para o manejo de bactérias multirresistentes e rastreamento de implantes médicos. Este grupo de 24 grandes especialistas na área foi liderado pelo meu amigo e colega David Uip, Secretário à época, e que deixou em registro um projeto fundamental ao enfrentamento futuro desta grave situação de saúde pública, particularmente, no âmbito hospitalar.
Como sabemos e tememos, as infecções resistentes aos medicamentos estão associadas a morbilidade e mortalidade substanciais e estima-se que tenham contribuído para cerca de cinco milhões de mortes a nível mundial em 2019, período pré-pandemia.
Este é um número já elevado, mas apenas estimado. Isto quer dizer que pode ser ainda maior dependendo dos controles institucionais e registros que possam haver. O peso da resistência antimicrobiana é observado de forma desproporcional nos países de baixa e média renda, particularmente na África Subsaariana. Sem intervenção, estimou-se que as mortes globais atribuíveis às infecções por germes resistentes aos antimicrobianos, se não houver algo que possa modificar a história natural, poderá atingir 10 milhões anualmente até 2050.
A resistência antimicrobiana é um problema de saúde única e as suas causas residem nos domínios humano, animal e ambiental. O uso excessivo e indevido de antibióticos e o potencial de transmissão dentro e entre estes domínios são responsáveis pela rápida disseminação global de agentes patogênicos resistentes aos medicamentos.
A utilização de antibióticos aumentou 65% a nível mundial entre 2000 e 2015, e mais do que duplicou nos países de baixa e média renda durante o mesmo período. A evolução da resistência antimicrobiana patogênica pode limitar a eficácia dos antibióticos disponíveis e ultrapassar em muito a nossa capacidade de desenvolver novos medicamentos.
Dos 32 antibióticos em desenvolvimento clínico no momento para combater agentes patogênicos prioritários neste mesmo ano de 2019, apenas seis foram classificados como inovadores. São urgentemente necessárias medidas para impedir o desenvolvimento da resistência aos medicamentos.
Os maiores problemas ligados ao tema são:
1- A prevalência e os desafios clínicos de bactérias resistentes a medicamentos, incluindo combinações específicas de patógenos e medicamentos, particularmente em populações clinicamente vulneráveis como, por exemplo, neonatos, pacientes imunossuprimidos, etc.;
2- Intervenções para reduzir a transmissão de doenças, incluindo água, saneamento e higiene, vacinação e prevenção e controle de infecções;
3- Diagnósticos que informem a prescrição de antimicrobianos , incluindo genômica de patógenos, diagnóstico rápido, relação custo-benefício e sustentabilidade das técnicas de diagnóstico;
4- Uso indevido e excessivo de antimicrobianos, incluindo vendas e disponibilidade de antimicrobianos de venda livre, adesão a programas de gestão de antimicrobianos e uso de antimicrobianos em ambientes agrícolas e da saúde;
5- Economia do acesso e uso de antimicrobianos , particularmente em ambientes de países de baixo e médio rendimento e como isso é influenciado pela resistência;
6- Intervenções One Health para reduzir a resistência antimicrobiana, restringindo o uso de antibióticos na agricultura, na produção de animais para alimentação.
Os patógenos de maior preocupação e maior carga global (excluindo Mycobacterium tuberculosis, agente causador da tuberculose) são a Escherichia coli, o Staphylococcus aureus, a Klebsiella pneumoniae, o Streptococcus pneumoniae, o Acinetobacter baumannii e a Pseudomonas aeruginosa.
Todas estas bactérias são muito conhecidas por nós em nosso trabalho junto aos hospitais e unidades de saúde e são nossos alvos de monitoramento e aperfeiçoamento.
Apesar deste tema ser bastante técnico é fundamental que a população, os gestores de saúde e os profissionais de saúde tenham absoluta atenção pela gravidade e pela imprevisibilidade que este problema traz à saúde pública.
Assim, fica este registro para que todos prestem muita atenção e cuidem para evitar que a resistência antimicrobiana continue a progredir alimentada, principalmente, pelos nossos maus usos e abusos de antibióticos.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan. Atual Diretor Científico da Associação Brasileira de hematologia e Hemoterapia (ABHH) da Associação Médica Brasileira (AMB).