A fome que bateu à porta do brasileiro tem um retrato igualmente dramático em Campinas. Famílias em situação de vulnerabilidade social, que perderam renda e trabalho na pandemia da Covid-19, ficaram sem poder aquisitivo para compras básicas, colocando em risco o próprio sustento. Ajuda de amigos e parentes, doações de cestas básicas e busca por sobras de comida entraram no cotidiano desses campineiros que vivem na tênue linha entre pobreza e miséria. Fazer a xêpa no final das feiras e comprar carnes de terceira em açougues ficaram cada vez mais comuns. Há alguns estabelecimentos que dão desconto em carcaças de animais, vendendo a preços módicos partes geralmente dispensadas na hora de limpar os cortes bovinos e de frango. Outros doam retalhos e ossos com carnes fibrosas. O Hora Campinas publica nesta quinta-feira (28) a segunda reportagem da série “Fome e Solidariedade”.
Não é difícil achar testemunhos de dificuldade extrema. Em bairros historicamente mais carentes, mesmo com a essencial ajuda de programas públicos ou de organizações não governamentais (ONGs), são muitos os relatos de necessidades e dificuldades, abrandadas com a corrente do bem.
“Não está sendo fácil, estou vivendo de doação”, revela Kátia Regina Coqueiro, mãe de três filhos e moradora do Parque Oziel. Ela tem contado com a ajuda de amigas do bairro e lembra que, quando há entrega de cestas básicas numa creche, corre para não perder a sua parte. Kátia lembra da importância da associação do Oziel, que colabora para viabilizar donativos. No dia da visita do Hora Campinas a sua casa, ela limpava cortes de frango doados por um mercado. “Fui lá, pedi pro moço e ele deu”, narra. Ela admite que não fossem as doações, poderia ter passado algum dia sem literalmente nada para comer. “Estou desempregada”.
Dramas pessoais
Além das dificuldades econômicas e da batalha pelo alimento, famílias campineiras vivenciam os seus dramas pessoais. Vem também do Parque Oziel um relato de adversidade, agravada pela pandemia. A dona de casa Maria Eliete da Silva tem enfrentado os apuros da falta de dinheiro com os cuidados com o pai, que sofreu um acidente vascular cerebral. O agravamento da crise econômica por conta da Covid-19 veio logo depois de terminar um tratamento de câncer de mama na Unicamp. “Minha rotina é assim: do meu pai, comigo, do hospital para casa”, lamenta.
Sobre a alimentação, Maria Eliete também se vale de doações de parentes. “Às vezes, quando não tem comida, a gente faz bolinho de farinha e toma café”, relata a alagoana que tenta a vida em Campinas.
Testemunhos como o da moradora do Parque Oziel comprovam que a rede de solidariedade agigantou-se ainda mais com a pandemia, mesmo com as dificuldades logísticas para levar os donativos até as casas das famílias em situação de vulnerabilidade social. A empatia passou a ser um ativo também em meio à crise sanitária, levando muita gente a ter iniciativas isoladas de doação, garantindo um pouco de conforto a quem perdeu renda e emprego.
Feac e o Mobiliza Campinas
Doadores anônimos, poder público e iniciativa privada acabaram criando uma grande força-tarefa de amparo às pessoas em maior vulnerabilidade social durante a pandemia. Duas iniciativas valem ser destacadas em Campinas, uma delas liderada pela Fundação Feac. A Federação das Entidades Assistenciais decidiu ampliar o seu leque de ações sociais criando, no ano passado, a campanha Mobiliza Campinas. De acordo com dados disponibilizados no site da Feac, a arrecadação chegou a R$ 6,3 milhões em 2020. Esses valores resultaram em reforço no orçamento para 6.300 famílias que estavam em situação de insegurança alimentar.
Neste ano, segundo o site, a Fundação Feac fez um aporte de R$ 2 milhões para a campanha. A captação de recursos foi encerrada em setembro último, e alcançou R$ 3,2 milhões aproximadamente. O valor impactou 27 mil famílias, das quais 6,8 mil receberam o cartão-alimentação. A iniciativa contou com a adesão de 40 empresas e 1.645 pessoas físicas. Um total de 70 organizações da sociedade civil se uniu para garantir a logística de todos esses donativos.
Além dos cartões-alimentação, que garantiu um benefício mensal de R$ 120, o Mobiliza Campinas arrecadou 2,5 toneladas de alimentos, 1,4 tonelada de produtos de higiene, uma tonelada de litros de leite e 14 mil litros de água.
Cufa arregaça as mangas
A Central Única das Favelas (Cufa) é uma organização reconhecida nacional e internacionalmente. Existe há duas décadas e se notabiliza por valorizar, apoiar e difundir projetos nas áreas social, política, esportiva e cultural. Com a pandemia, e considerando a sua estreita ligação com as comunidades mais carentes, passou a ser um braço importante de solidariedade.
Essa corrente conta com o apoio decisivo de jovens, parte deles formada nas oficinas de capacitação e profissionalização das bases da instituição e oriundos das próprias comunidades mais vulneráveis. Conhecendo a realidade das periferias, a Cufa se tornou um elo importante para tornar o cotidiano desses núcleos menos cinzento na pandemia.
A coordenadora social da Cufa Campinas, Marcela Reis, lembra que o trabalho de ajuda é diário, graças às contribuições que têm recebido, seja de pessoas físicas ou jurídicas. “Com a colaboração decisiva dessas doações, estamos conseguindo levar para essas famílias um pouco mais de dignidade”.
A Cufa atende em Campinas, mensalmente, segundo Marcela, mais de 2 mil famílias. São entregues cestas básicas, kits de higiene, fraldas, leite e até botijão de gás.
Na cidade, 56 comunidades estão sendo atendidas. “Nosso público-alvo é de grande vulnerabilidade e complexidade. São pessoas que têm condições precárias de moradia. Muitas delas são mulheres chefes de família, mães solteiras”.
Solidariedade e responsabilidade social
Marcela Reis comenta que a pandemia elevou a temperatura da solidariedade comunitária e da responsabilidade social por parte das empresas. “A solidariedade se tornou uma das principais armas contra a pandemia. É de extrema importância essa ajuda diante do aumento da desigualdade social”, conclui.
Ações da Secretaria Municipal de Assistência Social
A pandemia do novo coronavírus exigiu do poder público uma adaptação nos programas e um reforço nas demandas que se tornaram mais emergenciais. Iniciativas voltadas à população de rua, ainda mais vulnerável durante a crise sanitária, se fizeram necessárias.
A Prefeitura de Campinas criou dois projetos voltados a esse segmento. Um deles é o SOS Rua, pelo qual se faz a abordagem social ao público em situação de vulnerabilidade. O serviço, conveniado pela Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, ocorre das 18 às 22hs. O outro, também conduzido pela Pasta, é o Mão Amiga, cujo objetivo é gerar oportunidade de trabalho às pessoas em situação de rua, qualificando-as e incentivando-as à reinserção no mercado de trabalho.
O governo Dário Saadi também mantém programas ou parcerias para garantir renda e auxiliar famílias carentes. Em parceria com o governo federal, estão ativos programas como o Bolsa Família (41.748 inscritos), Benefício de Prestação Continuada, o Casa Verde e Amarela e a tarifa social de energia elétrica. Deve entrar em vigor em breve um pacote de ações na cidade por meio do Campinas Protege, voltado às famílias em vulnerabilidade social. O projeto já passou pela Câmara nas duas instâncias (legalidade e mérito), falta o decreto que regulamenta os pontos do programa. Campinas tem também o Bolsa do Povo, que inclui renda cidadã e auxílio-moradia.
Videoreportagem: Leandro Ferreira