O ano de 2020 foi marcado pelo recorde de 76.175 divórcios, contra 45.928 em 2010, e certamente o índice deverá aumentar no ano que vem. As crises são eventos traumáticos que alteram o funcionamento da família, e como diz Márcio Belo, médico psiquiatra, sexólogo, psicoterapeuta de casais e família, funcionam como crises políticas e econômicas, só resolvidas depois de muito diálogo e terapia.
Elas sempre existiram, mas por conta do isolamento social, todas as famílias foram atingidas durante a pandemia, em maior ou menor grau. Os especialistas receberam muitos casais em conflito, e em alguns consultórios, como o do Márcio, a procura aumentou em 50%.
Pais e filhos dentro de casa, sem ninguém para ajudar, sequer a faxineira e os avós nos finais de semana, os problemas ganharam proporções gigantescas.
A sociedade sofre um processo de cobrança por felicidade, ausências de sofrimentos, frustrações e desejos realizados imediatos, o que são incompatíveis com relações humanas, inclusive com o casamento.
A relação conjugal é a união de duas pessoas que vieram de famílias diferentes, com valores, costumes e personalidades distintos que geram diversos conflitos. Na maioria das vezes, essas crises conjugais são resolvidas com os próprios recursos do casal. Quando se prolongam e causam grandes desgastes e sofrimentos na relação, a terapia de casal é um recurso útil e funcional, como avalia Márcio Belo, fundador do Instituto Persona, de Campinas.
“Vários fatores contribuem para uma maior procura pela terapia de casal e divórcios, sobretudo durante a pandemia do coronavírus, que devido ao isolamento social e excessos de convívio familiar causaram mais conflitos, principalmente em casais onde já existia alguma disfuncionalidade. Outros motivos que também contribuíram para as crises são a sobrecarga com os cuidados dos filhos, divisão de tarefas e papéis a serem executados, restrição do lazer e do contato com familiares e amigos”, completa Márcio.
O terapeuta de casais explica que a terapia tem vários objetivos: diálogo, definições de papéis, exercício da sexualidade, manejo de contas e finanças, educação dos filhos, recontratos e resgate da afetividade. Outras indicações frequentes são: infidelidade, dependência química, disfunções sexuais (falta de desejo, disfunção erétil e ejaculação precoce), divergências na educação dos filhos, conflitos religiosos e socioculturais.
Na maioria das vezes, o casal busca a terapia para resoluções de conflitos e manter a união. “Quando esse objetivo não é atingido, a terapia também ajuda na separação de uma forma mais civilizada e menos sofrida possível”, diz Márcio.
Os casais jovens suportam menos as diferenças que os fazem sofrer e se separam mais rapidamente, enquanto os que estão na faixa dos 30 aos 45 anos se adaptam melhor ao diálogo para lidar com os conflitos. Têm mais predisposição à renúncia e ao entendimento da individualidade e da conjugalidade.
Puladinhas virtuais e busca por trisal
Óbvio que, com os problemas do isolamento, uma válvula de escape foram as puladinhas virtuais. Comuns desde que os chats deram o ar da graça, há uns vinte anos, com o passar do tempo a internet ganhou opções variadas para que os contatos íntimos fossem mais corriqueiros. Com a pandemia, a libido que faltou em casa foi transferida para os contatinhos on-line.
Nos classificados do amor, como se autodenominam os anúncios de sexo, casais passaram a buscar parceiros separadamente ou em grupo. Muitos escancararam o desejo de formar um trisal, ou relacionamento a três, um homem e duas mulheres, como se a três os problemas não existissem.
Falando outro dia sobre o assunto no programa Linhas Cruzadas, da TV Cultura, o filósofo Luiz Felipe Pondé comentou: “Se a dois é complicado, imagine a três!”. Mas cada um com suas escolhas, certo?
Conversei com alguns desses casais. Um deles me informou que está na faixa dos 65 anos, filhos casados, e agora os dois querem uma amiga íntima para passar horas agradáveis. A mulher admite que o desejo de formar um trisal é mais do marido do que propriamente dela, mas topou. “Somos felizes juntos, nos damos muito bem, vida sexual satisfatória, mas há essa curiosidade, principalmente da parte dele, não sei se da minha parte é mais fantasia, talvez na hora de concretizar eu não consiga”, confessa a esposa.
Ela conta que compraram um celular só para marcar encontros, mas o que mais tem aparecido são garotas muito jovens em busca de casais mais velhos que as sustentem. “Isso não queremos. Nada de ser sugar daddy ou sugar mammy. Não queremos uma sugar baby, temos filhos dessa idade, seria um absurdo!”, diz a esposa, indignada com as propostas de mocinhas abusadas.
Na realidade, o termo sugar é usado atualmente como uma nova forma de prostituição. “Em troca de companhia e sexo, a pessoa quer alguém que pague suas contas”, lembra o terapeuta.
Mas os casais muito jovens também querem formar um trisal. “Uma relação sem ciúme, sem posse, mais moderna”, define uma garota de 25 anos, casada há dois com um rapaz de 27. Há, inclusive, aplicativos destinados especificamente para o sexo a três – ou mais. Parece que virou moda. Na verdade, como comenta Márcio Belo, o desejo sexual é alimentado pelas fantasias, e uma delas é a introdução de outras pessoas dentro de uma relação a dois. Hoje, isso fica mais evidente com os sites de relacionamento; a internet ajuda a visibilizar isso de uma forma maior.
“A grande questão é como fazer isso, pois para o casal abrir essa relação, o contrato conjugal tem que estar muito bem estabelecido, e um dos critérios é não ter ciúmes e não fazer isso só pelo outro. Isso gera um conflito muito grande pelo fato de você abdicar de seu prazer só pelo prazer do outro, numa situação incômoda e geradora de ciúmes. Outra possibilidade é você se apaixonar pela terceira pessoa”, exemplifica.
O Brasil é um dos países que mais consomem pornografia na internet e com a pandemia isso aumentou.
A questão é, segundo o sexólogo, se dentro do casamento isso é traição ou não, depende do contrato. Outro ponto do poliamor, por sinal bem complexo, é se os mais jovens estão em busca de liberdade ou têm dificuldade em lidar com a frustração monogâmica.
“Muitos têm uma ilusão de que, quando você se casa, vai desejar só aquela pessoa para o resto da vida, quando não é verdade. O que você faz dentro do contrato monogâmico é exercer o seu desejo sexual apenas para aquela pessoa com quem se casou, mas pode ter desejo por outras pessoas, então cria uma frustração por não conseguir realizar esses desejos. E, às vezes, entra a dificuldade de cumprir esse contrato de fidelidade”, completa.
Socialmente, como lembra o especialista, a construção do amor foi baseada no amor romântico, patriarcal, heteronormativo e monogâmico, então essa nova forma de se relacionar pode causar repulsas, descrenças e preconceitos. “A viabilidade deste exercício de amar depende da quebra de paradigmas pessoais e sociais”, observa.
Segundo o terapeuta de casais, o amor romântico não serve mais para nada.
“Os casamentos modernos precisam de parceria, cumplicidade, respeito, desejo sexual, renúncias, enfim, de tudo o que é mais importante para manter a relação, e o amor romântico é idealizado, ele não existe, não dá sustentação ao casamento”, esclarece.
O conceito de poliamor se baseia no amor livre, da não monogamia, da responsabilidade, da compersão (inverso do ciúme), do respeito à individualidade, da liberdade sexual, da equidade de gênero e do diálogo. “Em estudos americanos, o poliamor é interpretado de diversas formas: prática de relacionamento, filosofia, teoria, estilo de amar (lovestyle), orientação de relacionamento (relantionship orientation) e identidade. Para que esta prática funcione, os poliamoristas, denominação dos que praticam, têm que ter os conceitos e regras muito bem estabelecidos para evitar conflitos e sofrimentos”, conclui Márcio Belo.
O especialista confirma: “Os casais que procuram por terapia para resgatar o casamento, em sua grande maioria conseguem manter a relação de uma forma mais leve e funcional”. Boa notícia!
Janete Trevisani é jornalista [email protected]