Taissa toma oito medicações controladas por dia. A dieta alimentar é baseada em Nutren 1.0 dosada a cada 4 horas e inserida no organismo por meio de uma sonda digestiva. Ventilação mecânica e aparelhos que eliminam secreções das vias respiratórias e facilitam a chegada do ar aos pulmões fazem parte da UTI domiciliar montada no quarto de uma casa, no Jardim São Vicente, em Campinas, onde Taissa passa seus dias. Tudo é administrado pela mãe Maria de Fátima Sousa, que há 23 anos viu a filha ainda adolescente deitar numa cama para nunca mais levantar.
A dedicação integral aos cuidados de Taissa, que teve paralisia cerebral em função de uma parada cardiorrespiratória quando ela tinha apenas 15 anos de idade, se tornou a rotina de Maria de Fátima desde então. E as preocupações do presente se somam ao medo do futuro, confessa a mãe de 64 anos.
Em meio às tarefas diárias, ela admite não conseguir se desvencilhar de uma questão que se tornou perturbadora: “Se eu morrer antes da minha filha, quem vai cuidar dela? Essa é a grande preocupação da minha vida. Peço a Deus para que ela vá antes de mim.”
Maria de Fátima, no entanto, não está sozinha. A preocupação que a aflige também se faz presente no dia a dia de muitos daqueles responsáveis pela dedicação ao amparo de pessoas que se tornaram, não raramente, completamente dependentes. “Se, em uma família, só a mãe é responsável pelo cuidado do filho com deficiência, o que vai acontecer quando ela não estiver mais aqui?”, questiona a psicóloga Viviane Machado, integrante de uma equipe em Campinas que aponta para uma luz em meio à escuridão.
A possibilidade de Taissa receber um amparo adequado na ausência de sua mãe existe a partir de um planejamento em seu entorno. Essa é a proposta de um programa com um nome bem sugestivo.
Apoiado pela Fundação FEAC, da qual a psicóloga Viviane faz parte, o Asas busca a criação, fortalecimento e ampliação de uma rede de apoio por meio de encontros coletivos. A ação existe em Campinas desde o ano passado e tem feito a diferença na vida de muitas famílias. Hoje, atende cerca de 140 pessoas, entre pais, responsáveis e dependentes.
O programa é uma luz, principalmente para quem não está inserido em uma estrutura familiar já preparada para direcionar e acolher a pessoa com deficiência.
É o caso de Maria de Fátima, que tem mais dois filhos, além de três irmãs e mãe, mas todos impossibilitados de assumir a responsabilidade em cuidar de Taissa. “Esse cenário é comum”, diz Catarina Palermo, coordenadora do Asas.
“Normalmente, as pessoas vão se isolando, principalmente a figura feminina, e perdendo as conexões para se dedicar exclusivamente ao cuidado do indivíduo. No projeto, fazemos um convite à reflexão. É importante ressaltar que a rede de apoio não está ligada somente ao grupo familiar. À medida que as conexões vão acontecendo com pessoas que têm a mesma situação de vida, elas vão se aproximando pela empatia”, completa.
O Asas surgiu a partir da adaptação de uma metodologia desenvolvida no Canadá por meio do Plan Institute. O método é aplicado há mais de 40 anos em diversos países e foi trazido ao Brasil em 2020 pela Asid – Ação Social para Igualdade das Diferenças.
Em Campinas, dez Organizações da Sociedade Civil, parceiras da FEAC, que atuam com a inclusão da pessoa com deficiência, foram capacitadas. A ação trabalha ainda na formação de multiplicadores e na disseminação da metodologia para que mais famílias sejam alcançadas.
E o futuro?
“Em uma das atividades do projeto, o familiar é convidado a escrever uma ‘carta para o futuro’, expressando como gostaria que as pessoas tratem seu familiar com deficiência, quando ele não puder estar presente”, relata a psicóloga Viviane. “Projeto para minha filha uma vida saudável, com qualidade, exercendo seus direitos como cidadã”, seria o conteúdo da carta da aposentada e viúva Rosalina Cortez, de 64 anos.
A filha Bianca, de 27, tem Síndrome de Down e hoje, na ausência da mãe, não teria com quem ficar, apesar da família numerosa. “Cada um tem sua rotina, é difícil alguém assumir. Estou em busca de alguns projetos de moradia assistida”, diz Rosalina, que não conhece o Asas, um programa que também estimula as pessoas com deficiência a desenvolverem autonomia e tem hoje no Centro Síndrome de Down (Cesd) uma instituição certificada. “A Bianca quer viver de arte, dança e viagem. Sempre que posso, proporciono essas coisas para ela, mas não é sempre que consigo.”
Quem está inserida no Asas é a família da tatuadora Daniele Chaibub Linhares, que vive uma situação diferente da maioria dos grupos que procura o programa. Ela cuida da tia Andrea, com Síndrome de Down, que é oito anos mais velha. “Eu tenho 40 e ela 48”, diz Daniele.
A tatuadora conta que, antes de conhecer o Asas, passou por situações difíceis em função do cuidado dedicado aos avós, os pais de Andrea. Ambos desenvolveram a Doença de Alzheimer (DA), contexto que abalou bastante o comportamento da tia. “Se minha avó tivesse um planejamento como o oferecido pelo Asas, teria sido tudo mais fácil e tranquilo para todos”, acredita. Hoje, Daniele enxerga a tia como uma filha.
“Acho que todos deveriam se aproximar e conhecer mais pessoas com deficiência intelectual. Elas são puro amor e sempre nos ensinam algo novo.”
Quem tem o privilégio de contar com o amor integral da família é Tatiane, de 41 anos, cuja deficiência mental a torna parcialmente dependente dos pais. “Quando eu e meu marido morrermos, já é certo que nossa aposentadoria será direcionada a ela”, conta a mãe Cleusa Regina Ferreira dos Santos, de 61 anos. “E já foi acertado em família que ela será cuidada pelos meus outros dois filhos, Ricardo e Rodrigo, que são casados.”
SERVIÇO:
Famílias interessadas em participar do projeto Asas podem entrar em contato com o Cesd (Centro Síndrome de Down) pelo número 19-99825-6444.