Imagine uma área do tamanho da cidade de Campinas envenenada e completamente arrasada, com árvores secas a animais mortos. Foi exatamente isso que aconteceu no Pantanal, onde um pecuarista, por três anos, despejou veneno em 80 mil hectares de bioma preservado, o equivalente a 800 milhões de metros quadrados, de acordo com informações da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso.
Claudecy Oliveira, de 52 anos, que pode ser cobrado em mais de R$ 300 bilhões pelo crime ambiental, usou até mesmo substâncias contidas na arma química produzida pelos EUA na guerra contra o Vietnã, o agente laranja, para destruir um dos ecossistemas mais sensíveis e importantes de nosso país para, segundo ele mesmo, abrir pasto para criar gado. Neste momento, o veneno continua se infiltrando nos solos, contaminando lençóis freáticos e intoxicando os seres vivos nas proximidades.
Embora a proporção do estrago seja espantosa, a prática do ecocídio, ou seja, o extermínio de ecossistemas, não é novidade entre criminosos que usam a justificativa da expansão do agronegócio para destruir áreas de vegetação nativa e “passar a boiada”, como queria Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro.
Engana-se, todavia, quem pensa que só houve ecocídio no governo passado, negacionista e antiambiental. Foi sob a liderança de Lula, em 2008, que o Brasil assumiu, vergonhosamente, a 1ª posição no ranking global dos países que mais consomem agrotóxicos no mundo, de acordo com dados da FAO/ONU.
Com o vertiginoso crescimento de uma economia agroexportadora, baseada na produção em latifúndios monocultores de soja, algodão, cana e pecuária bovina, o uso de veneno para devastar biomas como o Cerrado e a Amazônia se tornou corriqueiro, com aprovação de Leis liberando o uso de substâncias tóxicas e nocivas à saúde desde 2000. O governo Fernando Henrique Cardoso detinha o recorde de aprovação de agrotóxicos, superado apenas pelo governo Bolsonaro, que liberou o uso de 2.182 novas substâncias, a maioria proibida nos EUA, na Europa e na China, em 4 anos de mandato. Sob Bolsonaro e Salles, conforme dados do Mapbiomas, foram desmatados mais de 6 milhões de hectares, o equivalente a uma vez e meia o estado do Rio de Janeiro.
A pressão da bancada ruralista pela aprovação do Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012) no governo Dilma foi uma das principais causas do desgaste político que levou ao golpe parlamentar contra a presidenta, em 2016. E não foi a primeira vez que a elite rural, herdeira do modelo colonial-escravista brasileiro, mostrou sua força: o poder absoluto dos senhores do engenho e dos barões do café se manteve quase intacto mesmo após a Independência e a proclamação da República no Brasil.
Não à toa, a República Velha foi marcada pela política do “café com leite”, controlada pelos agropecuaristas. Setores conservadores e antiprogressistas do campo desafiaram Vargas sucessivas vezes e, em 1964, sustentaram o golpe civil-militar contra Jango assim que a Reforma Agrária foi anunciada como uma das mais importantes reformas de base do mandatário.
Durante a ditadura imposta entre 1964 e 1985, os “grandes projetos” serviram de desculpa para rasgar florestas, desviar rios, envenenar solos, assassinar povos indígenas e concentrar terras em nome de um falso progresso, jamais compartilhado com a população de forma democrática.
Mesmo com a Constituição de 1988, que criou dispositivos legais como forma de proteger o meio ambiente, incluindo a previsão de Reforma Agrária em latifúndios improdutivos, a presença massiva de deputados e senadores defensores do agronegócio predatório no Congresso, bem como prefeitos e governadores comprometidos com os próprios interesses, preservaram a estrutura política e agrária feudalista de um país colonial que ainda sofre para exercer verdadeiramente a liberdade e a democracia. Não causa estranheza perceber um forte alinhamento da grande imprensa ao agronegócio, já que a elite rural é detentora e patrocinadora de grande parte dos veículos de comunicação.
Como potência agrícola mundial, o Brasil possui formas de produção alternativas aos latifúndios monocultores que servem essencialmente para exportar commodities, acumular terras, dinheiro e cometer crimes ambientais.
A Agricultura Familiar, por exemplo, soma cerca de 4,5 milhões de pequenas e médias propriedades rurais (até 100 ha) onde trabalhadores e trabalhadoras do campo produzem mais de 70% dos alimentos que consumimos diariamente no país (arroz, feijão, mandioca, frutas, legumes, hortaliças).
Menos mecanizada, a Agricultura Familiar emprega cerca de 75% da mão-de-obra campesina, mas ocupa menos de 23% das terras rurais do Brasil. Além disso, prioriza as vendas regionais e o abastecimento do mercado interno nacional, fomentando o comércio local e ofertando alimento saudável, com preços competitivos, para a população.
Em outras palavras, a Agricultura Familiar gera mais emprego, produz alimentos, fomenta o livre comércio, dinamiza a economia local e ocupa muito menos espaço do que o Agronegócio, profundamente dependente de parcerias com a China, lucrativo e acessível apenas a herdeiros de latifúndios e fazendeiros que dispõem de milhões de reais para comprar máquinas importadas, sementes transgênicas, veneno e influência política.
Em oposição ao governo Bolsonaro, que não destinou recursos federais a pequenos e médios produtores em 2021 e 2022, Lula anunciou a retomada de incentivos à Agricultura Familiar no Plano Safra 2023/2024, mas ainda é pouco.
Movimentos sociais de luta por reforma agrária, como o MST, defendem amplamente que o acesso a pequenas propriedades viabiliza a produção de alimentos no campo, gerando emprego e garantindo renda a famílias produtoras, rompendo com o monopólio político, econômico e agrário de latifundiários que lucram, por séculos, à custa de trabalho escravo, devastação ambiental, lobbies políticos e submissão a países que importam cana, café, algodão, soja e carne bovina.
Mas quem é visto como herói e quem é visto como ameaça à soberania, à democracia e à liberdade em nosso país?
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.