Devemos reconhecer que as sociedades evoluem e que os maiores desafios estão nas fronteiras do conhecimento e nos temas que são “tabus”. Temas como o aborto, a eutanásia, a autonomia, a autodeterminação, dentre muitos outros, mesmo estando inseridos na Saúde não são exclusivos de nossa área e sim são temas onde toda a sociedade deve discutir e decidir sobre o que é melhor dentro de seu estágio de desenvolvimento social, cultural, científico etc. Eu considero os cuidados paliativos (CP) como uma destas áreas de fronteira e onde se tem buscado o melhor entendimento e desenvolvimento de suas práticas. Tenho consciência que tanto os profissionais como a sociedade como um todo enxergam, muitas vezes, de maneira equivocada os CP. O senso comum é que os CP são cuidados do “final da vida”, que “se contrapõem aos tratamentos convencionais (ou/ou) ”, são “barreiras para os encaminhamentos” ou podem “diminuir a esperança dos pacientes e familiares para o futuro”.
Estes pontos estão equivocados e devem ser esclarecidos.
Pela definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), os CP devem ter “assistência promovida por uma equipe multidisciplinar que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de uma doença ou agravo que ameace a continuidade da vida por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”. Podemos de maneira didática assinalar nove pontos fundamentais aos CP: 1- promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis; 2- afirmar a vida e considerar a morte como um processo normal da própria viva; 3- não acelerar ou adiar a morte; 4- integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado do paciente; 5- oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente viver tão ativamente quanto possível até o momento da morte; 6- oferecer sistema de suporte para auxiliar os familiares durante a doença e enfrentar o luto; 7- garantir abordagem multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e seus familiares, incluindo acompanhamento do luto; 8- melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença; 9- iniciar os CP o mais precocemente, juntamente com outras medidas terapêuticas*.
No âmbito da cidade de Campinas temos o Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD) ligado ao Departamento de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde. Este serviço é desconhecido por grande parte de nossa sociedade, mas posso garantir ser um orgulho pela competência e compromisso com pacientes portadores das mais diversas limitações clínicas e/ou de outras ordens. O SAD acompanha centenas de pacientes em suas residências promovendo assistência integral tanto em termos profissionais como materiais. É um dos serviços mais importantes prestados de modo silencioso e singular. Certamente, temos “dois Hospitais” de pacientes internados em suas casas sob cuidados do SAD.
Quando falamos em CP, temos longos caminhos a percorrer mesmo no campo dos profissionais de saúde.
Certamente, precisamos consolidar conceitos, estimular a criação de mais serviços, fomentar estudos voltados às diversas áreas do conhecimento, orientar e criar normas técnicas, éticas e legais; inserir os CP nos cursos de graduação (não só da saúde) e residências médica e multiprofissional; e definir diretrizes através do Ministério da Saúde e entidades de classe mantendo, assim, o estado-da-arte nos vários campos de ação. Enfim, devemos fazer um enorme esforço para a divulgação dos conceitos mais modernos a todos, promover cursos e treinamentos aos profissionais e a sociedade, treinamentos e conscientização das equipes para o adequado e temporâneo encaminhamento, integração das atividades ambulatoriais e hospitalares e, finalmente, técnicas de enfrentamento para o stress e burnout das equipes assistenciais no cuidado de pacientes com doença terminal.
Os CP são fundamentais à qualidade de vida de pacientes independente da expectativa de vida.
Temos situações, e não são raras, de pacientes que deverão ter cuidados paliativos por toda a sua longa vida. Daí a razão de dizer que CP é a técnica de enfrentamento das consequências de doenças ameaçadoras da vida e não simplesmente cuidados com pacientes terminais. Importante reforçar que, os CP são fundamentais para a vida, com qualidade e felicidade, independentemente do tempo. Não há qualquer contradição ou antagonismo entre uma abordagem adequada de CP e os tratamentos específicos a serem utilizados. Eles devem estar integrados e serem complementares buscando sempre dar vida com qualidade ao paciente.
O termo “cuidados paliativos” não deve causar medo ou apreensão aos pacientes e aos profissionais de saúde.
Ao contrário, esta prática é carregada de humanidade. Eu sempre digo que a beleza de nosso trabalho está em promover saúde a uma comunidade inteira, mas cuidar singularmente dos seres humanos em suas necessidades e angústias individuais. Os CP são certamente, um grande avanço civilizatório e estarão cada vez mais incorporados aos cuidados de saúde, praticamente em todas as áreas do conhecimento.
*Este texto teve a importante contribuição dos membros do Comitê de Cuidados Paliativos da Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH) da Associação Médica Brasileira (AMB).
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020