Aborto é um assunto tão complexo e cheio de nuances que não se pode reduzir o debate sobre ele calcado em uma verdade definitiva, porque essa verdade não existe. Não basta dizer “sou contra” ou “sou a favor”, como propõe O Direito de Viver (Roe v. Wade, EUA, 2021, 112 min.), de Cathy Allyn e Nick Loeb, e como enuncia o título original, como se estivesse elegendo quem foi o maior lutador de boxe: Mohamed Ali ou Mike Tyson?
E o erro dos produtores começa na escalação dos roteiristas e diretores. Eles poderão se tornar excelentes profissionais no futuro, mas foi temeridade escolher estreantes para escrever e dirigir filme sobre tema tão espinhoso e cujo roteiro, por conta de tamanhas demandas, nasce como uma peça confusa que chega a provocar enfado.
E, a não ser que os produtores supusessem que o filme estaria restrito aos Estados Unidos, e eles sabem que não, poderia se imaginar que uma produção de época (final dos anos 1960, começo dos 1970), com tantos nomes, acontecimentos, detalhes constitucionais, leis próprias dos estados e outros elementos pudessem ser facialmente traduzidos no Brasil ou em qualquer outro país.
Então, toma-se um tema complicado, conta-se uma história cheia de minúcias envolvendo infinidade de pessoas e tentar alinhavá-los em roteiro de cerca de duas horas. Difícil digerir o suposto debate e difícil compreender como se desenvolve a história.
Veja o trailer legendado no link https://www.youtube.com/watch?v=FShb-p46cPI
As complicações só estão começando. O nível dos atores (a lista do elenco é interminável) está muito abaixo do que se poderia esperar para contar o caso judicial histórico pelo qual a Suprema Corte reconheceu o direito ao aborto ou interrupção voluntária da gravidez, nos Estados Unidos.
Todos, sem exceção, exercitam interpretação histriônica, caso da feminista Betty Friedan (Lucy Davenport), e do protagonista Dr. Bernard Nathanson (Nick Loeb, que, como se vê, também atua) e da doutora Mildred Jefferson (Stacey Dash), para ficar em três exemplos.
E a tentação é grande em não mencionar o juiz Burguer, vivido por John Voight, que marcou uma geração com Perdidos na Noite (John Schlesinger (1969) e virou caricatura dele mesmo.
Problemas também estão na fotografia sépia, como se esta fosse a única alternativa para se narrar filmes de época. Sabendo usar, de fato, é um bom recurso, mas a repetição do uso acaba reduzindo a técnica a um clichê em vez de exercício de linguagem.
Mas, definitivamente, o grande equívoco do roteiro e da direção é o modo como debate o aborto.
Na verdade não há um debate, mas defesa de tese: somos contra o aborto. Ponto. Do outro lado está quem se opõe a ele. Haveria posições intermediárias? Sim.
Ser contra a interrupção da gravidez, mas não se descuidar de casos específicos, como quando ocorre estupro. Ou criar condições, por meio de leis, para dar opção às mulheres que desejarem abortar em vez de submetê-las a clínicas clandestinas sem nenhum tipo de amparo judicial ou cuidados médicos mínimos.
É verdade, o filme mostra Dr. Bernard e sua clínica ganhando muito dinheiro com o desespero de mulheres que, por vários motivos, desejam praticar o aborto. Ora, em última instância, qualquer que seja a natureza do serviço prestado por uma clínica, os respectivos médicos ganharão dinheiro. Não seja, pois, essa postura moralista a razão da proibição.
O fato é que O Direito de Viver se presta mais a um panfleto de propagação de ideias.
Basta mencionar a cena inicial na qual o famoso grupo racista norte-americano que não tem hombridade de mostrar a cara e dispensa apresentações, pretende impedir o nascimento de crianças negras.
Convenhamos, é golpe baixo comparar quem defende a interrupção da gravidez com nazistas. Na época dos acontecimentos mostrados no filme, as mulheres defendiam o direito de serem donas do próprio corpo e detentoras da última palavra. Afinal, trata-se de decisão tão difícil que, de fato, existe uma verdade: a verdade de cada diante de si mesmo e diante de Deus (para quem crê em Deus).
Disponível nos cinemas a partir desta quinta-feira, dia 7, e no streaming, em breve. Não recomendado para menores de 14 anos.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema