O Sistema Único de Saúde (SUS) é a mais importante política pública do Brasil definida pela Constituição de 1988. A implantação e o desenvolvimento do SUS vêm instalando em todo o País de maneira capilar a rede de atenção primária (AP) que garante acesso e qualidade à maioria da população brasileira. Dizemos sempre que a AP é a grande ordenadora e organizadora do SUS. Certamente, se não houvesse uma AP organizada, as dificuldades no enfrentamento da pandemia do SarsCov2 seriam muito maiores.
O trabalho da AP neste enfrentamento é constante, majoritário e, em grande parte, silencioso. De modo geral, milhões de procedimentos são feitos todos os dias em nossas unidades básicas de saúde e em domicílios através da AP, principalmente, pelas equipes da saúde da família e comunidade. Sem a ordenação da AP, manteríamos o estado de desorganização do sistema com consultas médicas, odontológicas, de enfermagem, etc. isoladas, com distanciamento físico e funcional dos serviços, enorme retrabalho nas ações de saúde com custos elevados de todas as ordens e, o mais grave, um sistema não integrado e não resolutivo.
Como já manifestei em texto anterior, um sistema desorganizado produz, estimativamente, 200% a mais de encaminhamentos, pressionando as especialidades (policlínicas, centros de referência, Universidades etc.), e rede de urgência e emergência e de hospitais de maneira insustentável. Um adequado sistema de AP deve encaminhar, no máximo, 15% de seus pacientes a outras instâncias de atendimento hierarquizado e descentralizado. Assim, estima-se que 85% de todas as necessidades dos cidadãos devem ser providas pela rede de AP.
Porém, neste artigo, gostaria de discutir a posição fundamental da AP no enfrentamento do câncer em nosso país.
Todos sabemos que isto não é simples nas sociedades modernas pela sua complexidade e enorme abrangência. Sabemos ainda que há um leque também muito extenso de ações de prevenção, profilaxia e de diagnóstico precoce que estão inseridos dentro das atividades da AP. Tivemos, recentemente, dois meses dedicados aos dois tumores mais frequentes da humanidade e que são responsáveis por parcelas importantes das mortes em nossa sociedade. Assim são o “Outubro Rosa” dedicado ao câncer de mama e o “Novembro Azul” dedicado ao câncer de próstata. Nestes dois meses, a ideia é alertar mulheres e homens sobre estas neoplasias, grandes flagelos mundiais. Ambos estes tumores, os mais frequentes, são passíveis de rastreamento, orientações e encaminhamentos no âmbito da AP. São tumores curáveis em mais de 90% dos casos quando precocemente diagnosticados e tratados. Exames clínicos relativamente simples como a palpação das mamas, seguido de avalição através da mamografia (eventualmente ultrassonografia em mulheres mais jovens e de alto risco) para o câncer de mama, e o toque retal seguido do controle do PSA (antígeno prostático sérico) podem ser a diferença entre curar e viver livre destas doenças com tratamentos adequados e mais resolutivos.
Outro tumor onde a AP foi e é fundamental é o câncer de colo uterino.
A introdução na década de 70 do exame de “papanicolau”, citologia oncótica, coletado periodicamente e principalmente nas UBSs e com grande especificidade, mudou a história desta doença em nossa sociedade. Trata-se de exame simples, barato e coletado em nossa rede de AP. Dados de nosso registro de base populacional mostram uma dramática redução das mortes por este tumor, não aparecendo, em várias regiões de nossa cidade, entre as dez causas de morte por câncer nas mulheres. Grande vitória, histórica, mas que deve ser mantida. Para o enfrentamento do câncer de colo uterino não podemos nos esquecer da vacina anti-HPV, disponível a todos os jovens adolescentes. Trata-se do único tumor que se pode prevenir com vacina.
No âmbito da AP devemos nos preocupar ainda com outros tumores muito prevalentes e que vêm crescendo de maneira preocupante: o câncer de colo e reto independente do gênero e o câncer de tireoide na mulher. Em relação ao câncer de colo e reto, é necessário robusto programa de detecção de sangue oculto nas fezes (exame simples e barato) e colonoscopia nos casos suspeitos ou com história familiar relevante. Infelizmente, este é o tumor que mais cresceu em sua frequência e mortalidade.
Em relação ao câncer de tireoide, o exame clínico associado a ultrassonografia, quando necessário, são medidas fundamentais à suspeita diagnóstica. Não podemos nos esquecer do câncer de pulmão, frequente e muito letal. Podemos dizer com absoluta convicção que um dos programas de saúde pública mais exitosos foi aquele ligado ao anti-tabagismo. Tivemos nos anos recentes uma extraordinária redução do consumo de cigarros em nossa sociedade. Espero sinceramente que isto permaneça. Faço este alerta pois vemos que existem alguns sinais de elevação do consumo de tabaco entre os mais jovens e isto é muito ruim e vai causar muitos danos e agravos no futuro.
O rastreamento do câncer de pulmão não é tão simples. Porém, um bom seguimento clínico associado a tomografia computadorizada são os métodos que podem trazer benefícios em termos diagnósticos e abordagem terapêuticas precoces.
Este é um programa que exigirá cooperação entre a AP e especialistas para encontrarem os melhores caminhos, resolutivos e que possam melhorar o prognóstico deste tumor.
Finalmente, como hematologista, não poderia deixar de alertar sobre as neoplasias ligadas à nossa especialidade. Em 2019, dentro da cooperação entre a Secretaria Municipal de Saúde e o Hemocentro da Unicamp, um treinamento para o diagnóstico e encaminhamento destes tumores foi realizado para alertar médicos e profissionais de saúde para estas doenças.
As neoplasias hematológicas são doenças emergentes em todo o mundo e muitas delas podem ser suspeitadas ou mesmo diagnosticadas com o exame clínico e/ou análise do hemograma (exame mais solicitado em todo o mundo). Não tenho neste breve relato intensão de esgotar este assunto. Apenas gostaria de alertar e enfatizar a importância da AP no controle e no seu papel fundamental dentro do programa de oncologia.
Novamente, toda a prioridade à AP e ao SUS.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020