Os tratamentos das neoplasias hematológicas no Sistema Único de Saúde (SUS) incluem as leucemias, agudas e crônicas; os linfomas, de Hodgkin e não-Hodgkin e o Mieloma Múltiplo, dentre muitas outras menos frequentes. É um grupo de tumores malignos que acometem, praticamente, todas as idades, desde crianças, adultos jovens e idosos, e são doenças emergentes em todo o mundo. Os linfomas e o Mieloma Múltiplo, por exemplo, crescem em sua incidência entre 3-4% acima do crescimento populacional desde a década de 30 quando estes dados passaram a ser compilados e organizados no mundo.
No Brasil, dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) estimam cerca de 25500 novos casos destas neoplasias por ano no Brasil sendo cerca de 25% (~7000) no Estado de São Paulo, em 2020. Assim, este grupo que era raro no passado recente, ocupa hoje o 5º lugar do mais frequente no Brasil, inferior apenas os tumores de próstata, mama, cólon/reto e pulmão. É fundamental enfatizar que este é um grupo de tumores com altas taxas de controle e de cura podendo chegar, em certas circunstâncias, a mais de 90% como no tratamento da leucemia linfoblástica da infância.
Por outro lado, são tratamentos complexos e que exigem formação profissional especializada, participação multidisciplinar no cuidado aos pacientes e estrutura de ambulatório, Hospital-Dia, internações (que podem ser de longa permanência e em ambientes controlados com filtros de alta performance – HEPA), suporte às emergências, laboratórios de rotina e pesquisa, centro de imagens, etc.
De fato, as formas mais agressivas destas doenças são as leucemias agudas. Este grupo, certamente, representa o maior desafio clínico e terapêutico quando comparado a maioria dos tumores humanos. Importante lembrar novamente que, apesar das enormes dificuldades terapêuticas, são doenças potencialmente, curáveis.
Apesar disto, infelizmente, estão associadas a altas taxas de mortalidade (superior a 50%), principalmente, nas fases iniciais de tratamento. O tempo para o diagnóstico e início do tratamento é crítico no prognóstico destes pacientes, mais do que em qualquer outro paciente oncológico. São doenças de evolução muito rápida e fatais nos primeiros dias ou semanas após o diagnóstico, se não houver o reconhecimento e instituição dos tratamentos de base e de suporte adequados. Seu cuidado, no âmbito do SUS, é caracterizado pela extraordinária dificuldade de acesso dos pacientes a este cuidado especializado. Segundo estudo desenvolvido pela Fundação Bill Gates e publicada em 2018 na prestigiosa revista The Lancet (1) e reproduzido em português na revista “Pesquisa-Fapesp” (2), as leucemias agudas são as entidades oncológicas com pior acesso no Brasil dentre as mais prevalentes que incluem doenças infecciosas e degenerativas no Brasil (27%, apenas).
Vários outros estudos nacionais, mostram que uma quantidade significativa destes doentes sequer consegue chegar aos centros de tratamento. Este fato pode estar relacionado tanto a estrutura hospitalar e de suporte adequadas ao tratamento destes pacientes como a total ausência de leitos especializados para o referenciamento dos mesmos.
O Brasil por ser um país continental e heterogêneo na distribuição dos serviços de saúde, adiciona dificuldades neste campo, particularmente em áreas mais distantes e remotas. Para dar um exemplo e que é a nossa realidade, em 2019, mesmo com o uso de critérios rigorosos de triagem e encaminhamento, 34% dos pacientes que solicitaram vagas para internação em enfermaria de Hematologia utilizando o sistema CROSS (Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde) da Secretaria de Estado da Saúde não puderam ser atendidos em nosso Hospital das Clínicas, único para o tratamento de adultos com leucemias agudas em nossa região. É claro, que este número pode ser maior tendo em vista a possibilidade de que pacientes possam ter ficado sem diagnóstico em sua cidade e mesmo no serviço de saúde de origem.
O complexo hospitalar da Unicamp é o único em nossa região para tratar leucemias agudas do adulto e o principal responsável pelo tratamento de pacientes com neoplasias hematológicas nos municípios que compõem as DRS 7 (Campinas) e 14 (São João da Boa Vista), que juntas têm uma população maior que a do Uruguai. O maior problema é estrutural hospitalar pois as condições de laboratórios e de recursos humanos preparados para cuidar dos pacientes são, absolutamente, adequadas.
No entanto, há apenas sete (07) leitos para atender todas as doenças hematológicas, benignas e malignas, número bastante inferior aos de outros hospitais e regiões do Estado de São Paulo. E estamos falando da região de Campinas. O tratamento destes pacientes tem características peculiares e que exigem alto nível de organização assistencial e de infraestrutura. As enfermarias devem ser preparadas para redução dos riscos de infecções hospitalares muito comum nestes pacientes pela imunossupressão e mielossupressão a que são submetidos pela doença de base e pelo tratamento; a média de internação destes pacientes é sistematicamente maior do que oito dias o que limita a rotatividade dos leitos; há necessidade de estrutura e pessoal preparado para o manejo de cateteres; deve haver uma forte integração com o serviço de hemoterapia para o pronto atendimento de suas demandas transfusionais; deve ser organizada equipe multiprofissional para cuidados paliativos e, finalmente, os laboratórios devem ser especializados e atualizados em biologia molecular, citometria de fluxo, citogenética, HLA, dentre outros.
Apesar de toda esta sofisticação, a restrição de leitos é o maior problema e que impacta de maneira absoluta e intransponível, o sucesso dos tratamentos instituídos. Assim, há urgência na ampliação do número de leitos para estes pacientes. Além disto, com parcerias entre os centros especializados de Campinas e região, poderia ser instituída uma rede hierarquizada de apoio, onde os pacientes poderiam ser atendidos da melhor maneira e ter acesso não só ao tratamento, mas aos inúmeros exames especializados.
Finalmente, devemos lembrar que nossa região e instituições são muito respeitadas em nível nacional e internacional. Assim, uma ampliação do acesso permitiria maior desenvolvimento de pesquisas clínicas e inovações que são constantes no mundo contemporâneo. Ademais, haveria melhor condição para formação profissional especializada para atender as demandas do presente e do futuro. Leucemias agudas são doenças órfãs no cenário nacional. É fundamental atentarmos e mudarmos isto e com urgência.
1- Access GBDH, Quality C. Lancet. 2018;391(10136):2236-2271,
2- Fioravanti C. Tratamento desigual; Fapesp Pesquisa, edição 270, 25-27, agosto 2018.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.
Bruno Kosa Lino Duarte é médico e doutor em Clínica Médica (área de atuação, Hematologia) pela Universidade de Campinas (Unicamp) e coordenador do serviço de Oncohematologia do Hemocentro da Unicamp.