Com o recente anúncio do governador de São Paulo sobre a liberação do uso de máscaras e a queda tanto no número de casos quanto de óbitos causados pela Covid-19, resultado alcançado graças à vacinação, muitas pessoas comemoram o tão desejado fim da pandemia que nos atormenta há mais de dois anos, mas que, longe de ficar no passado, deixará problemas estruturais graves, como o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas em um país que se afunda cada vez mais na inflação e no desemprego.
Se tem sido difícil sobreviver aos protocolos de biossegurança e à instabilidade econômica causada pelos estragos globais trazidos pelo coronavírus e, agora, também pela guerra na Ucrânia, imagine ter que enfrentar tudo isso vivendo com sua família em um barraco erguido com lona, retalhos de madeira, chão de terra batida, sem rede de esgoto, sem água encanada, longe de escolas, hospitais, empregos e sob a constante ameaça da violência do Estado em processos de reintegração de posse.
Essa tem sido a realidade de milhares de famílias que se aglomeram cada vez mais em regiões periféricas de Campinas e cidades da RMC na tentativa de buscar um abrigo, por mais rudimentar que seja, diante do desafio quase impossível de pagar aluguel, alimentos, transporte, medicamentos e necessidades básicas com empregos cada vez mais precários e salários cada vez menores.
Para sobreviver, as comunidades tiveram que enfrentar as frequentes sabotagens do governo federal em atrasar o início da campanha de vacinação, os cortes injustificáveis em programas de habitação social, a política de miséria mantida por um auxílio emergencial muito abaixo do necessário para o sustento de uma família, a destruição de garantias sociais e trabalhistas e o descaso dos poderes públicos locais ao negligenciar a urgência de atender famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica com a regularização de áreas de ocupação e a garantia de direitos previstos pela constituição a essas pessoas, como educação, saúde, moradia, alimentação, emprego digno, segurança.
Apesar disso, enquanto megaempresários, banqueiros e especuladores lucram com a miséria e a fome na ausência de políticas públicas mais eficazes, vemos iniciativas que provam o poder de mobilização e transformação da sociedade civil organizada. Um levantamento preliminar da TETO Brasil na RMC trouxe informações importantes sobre algumas comunidades.
Cerca de 450 famílias no acampamento Marielle Vive, em Valinhos, apesar das enormes limitações no acesso à água potável, produzem alimentos saudáveis e lutam pelo direito de permanência desde 2018, através do MST, num território próximo a áreas de preservação ambiental onde investidores do setor imobiliário pretendem construir empreendimentos de luxo.
Em Campinas, a ocupação Nelson Mandela conta com a atuação de lideranças jovens e femininas, além das Brigadas Populares de SP, empenhadas na construção de uma sede comunitária que possa funcionar como espaço de acesso a educação, cultura e organização para mais de 100 famílias abrigadas desde 2017, também em risco de expulsão por processos de reintegração de posse.
Na comunidade Capadócia, a mobilização comunitária conta com o apoio da rede Emancipa de Educação Popular para alfabetização de jovens e adultos, fruto de uma luta por moradia e educação que já dura quase dez anos. Na comunidade feminista Menino Chorão, lar de quase 400 famílias, as mobilizações mais recentes têm apoio da Pertim para a criação de uma horta comunitária agroflorestal como forma de contornar a fome, cada vez mais devastadora para pessoas de menor poder aquisitivo.
Essas comunidades têm em comum com centenas de outros lugares espalhados pelo Brasil a luta incansável de um povo trabalhador, criativo e dedicado, que faz a economia do país funcionar, realizando funções que, apesar de essenciais, são desvalorizadas e estigmatizadas, enquanto direitos fundamentais são negados.
Pessoas com sonhos, habilidades, ambições, limitações e angústias. Uma parte considerável da população que, ao invés de poder contar com o apoio do Estado e da iniciativa privada na garantia de igualdade de oportunidades, justiça social e direitos humanos, enfrenta preconceitos, intolerância, violências e dificuldades causadas pela ausência de serviços básicos e infraestrutura, além do medo de perderem seus lares no cabo de guerra desleal com quem busca lucrar com a mercantilização do direito a moradia, mesmo que isso aprofunde problemas como a fome e o desabrigo.
Vale destacar que, apesar de o inciso XXII, artigo 5º da Constituição Federal de 1988, garantir o direito à propriedade privada, o inciso seguinte a condiciona ao exercício de função social – ou seja, terras improdutivas, abandonadas ou apenas reservadas para a especulação imobiliária deveriam, no cumprimento dos artigos 6º, 23 (inciso IX) e 191, ser destinadas a programas de reforma agrária e urbana para assegurar acesso a habitação digna a pessoas que não têm condições de pagar por um lar, por mais que trabalhem e se esforcem em um sistema injusto que beneficia poucos em detrimento de muitos.
Refletir sobre essas questões em ano eleitoral é fundamental para fazer uma escolha consciente e responsável a favor do fortalecimento de democracias populares verdadeiramente inclusivas e solidárias. Enquanto isso, você pode apoiar as lutas de resistência nas comunidades de diferentes maneiras. Conheça mais em:
– Acampamento Marielle Vive: instagram.com/acampamentomariellevive
– Brigadas Populares SP: instagram.com/brigadaspopulares_sp
– Comunidade Nelson Mandela: instagram.com/mandelaresiste
– Pertim Agricultura: instagram.com/pertim_org
– Rede Emancipa na Capadocia: instagram.com/emancipaantonieta
– TETO Brasil em São Paulo: instagram.com/oescritorio
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes, coordenador de expansão da TETO Brasil na RMC.