Expulsos do paraíso, homem e mulher foram condenados a sofrer dores, obter sustento com fadiga, encarar caminhos de pedras e espinhos e morrer. Para amenizar, Deus dotou-os da capacidade de produzir arte e, tanto criadores quanto apreciadores, foram tomados de tamanho encantamento que lhes pareceu ter retornado ao paraíso perdido. A arte lhes ensinou (desde que despojados do racional e do apego ao conhecimento) a se identificar com o outro, se enlevar, edificar, comover e tangenciar a nobreza.
Somente ela, a mais sofisticada expressão humana, nos faz aproximar com prazer de um drama com tanta crueza e sofrimento como Meu Pai (The Father, Inglaterra/França, 2020, 97 min.), de Florian Zeller. Referendado por seis indicações ao Oscar, o crítico debruça-se sobre ele e, ao fim da tarefa de análise, recomendará ao espectador que assista nas horas de lazer – como se fosse entretenimento – a um filme áspero e dolorido.
Arte pode ser diversão. E, até, reflexão. Ou prazer. Quando deparamos com o protagonista Anthony (Anthony Hopkins) nos identificamos com a dor – porque somos iguais na dor. Ele pode ser nós mesmos, nossa mãe (pai), tia (tio), irmã (irmão). Assim é desde quando os gregos se reuniam em arenas para assistir às tragédias e atingiam a catarse, o derramamento da alma (acompanhado do pranto), a limpeza e a purificação.
Veja o trailer. Clique no link https://youtu.be/CDbiBDW5Hj4
Se não se interessa pela identificação com a dor, desfrute do prazer de ver Hopkins atuar. Ele faz parte da escola britânica dos grandes atores. Em Hollywood, em alguns momentos, se deu o direito de ligar o automático, mas retorna em papel memorável de absoluta entrega: trabalho corporal minucioso, gestos, expressões, olhares, intenções e entonação da voz a serviço de atuação trágica e doce, generosa e comovente.
Ou, no papel de clínico da arte, avalie o roteiro incomum comparado àqueles que narram histórias de enfermidades no cinema. Não por acaso, vem do teatro. A deferência se justifica porque o roteiro, uma vez transformado em filme, deixa de existir e muitas são as cabeças que o definem: diretor, editor, produtor. A peça teatral existirá sempre porque foi escrita como obra literária e a originalidade lhe concede eternidade – mesmo com as visões particulares de cada montagem.
E quem adaptou Meu Pai para o cinema foi o próprio autor da peça. Texto repleto de nuances, armadilhas, justaposições, pontos de vistas diversos que embaralham a percepção do espectador e o levam a questionar a verdade de cada personagem. Ao tratar o tema da demência do pai, a que se refere o título, o texto coloca em xeque as intenções dos personagens. A carpintaria exige nossa razão; a história trágica mexe com as emoções.
Também é prazeroso acompanhar Anne (Olivia Colman) e sua composição de filha amorosa que resolve dar rumo novo à vida. Humanos propensos ao julgamento que somos, questionamos a decisão dela. Terá assumido a nova vida ou se trata de avaliação do pai no processo de decadência da mente? São questões que enriquecem o filme e nos permitem mergulhar no universo rico e assustador das relações e da mente humana.
E há outros elementos a aguçar nosso senso estético. A narrativa incomum que exigiu edição criativa e atenta às intenções do texto. A direção, que conhecia bem os meandros, e optou corretamente por contar a história com a delicadeza que ela solicitava. A direção de arte, as locações, e as citações (de um quadro, da filha ausente ou da mãe) que não são meros adornos, pois estão a serviço de tratamento rigoroso no qual nenhum detalhe escapa.
Quando a catarse nos desmonta na inesquecível cena final de Anthony Hopkins, fica claro que estamos diante de um filme pouco palatável para quem prefere o cinema apenas para entreter-se.
Contudo, quem está disponível para acessar emoções mais profundas descobre o prazer que os primeiros humanos tiveram quando se viram dotados da capacidade de fazer ou de apreciar arte.
Disponível a partir de 9 de abril nas plataformas digitais Now, iTunes (Apple TV) e Google Play
João Nunes é jornalista e crítico de cinema