Embora não seja exatamente uma novidade, a inteligência artificial tem exercido enorme influência nas reflexões e discussões sobre o futuro das sociedades contemporâneas, que passam a depender cada vez mais de ferramentas tecnológicas automatizadas para manter em funcionamento sistemas que simulam respostas e reações “inteligentes”. Dos mais simples, equipados com calculadoras e sensores, para regular pressão e temperatura, por exemplo, aos mais sofisticados, capazes de orientar automóveis via GPS, simular a voz humana e fazer reconhecimento biométrico, os dispositivos digitais configuram a natureza antrópica das civilizações modernas.
Concebidas desde a origem social do ser humano, tecnologias capazes de facilitar ou otimizar tarefas nunca deixaram de ser criadas e aperfeiçoadas. Da invenção da roda, da ampulheta, da bússola e da pólvora às guerras com ogivas nucleares teleguiadas, manipulação genética e construção de androides, a pergunta que tira o sono dos pensadores continua sendo “para quê”? Produzir alimentos, construir cidades, combater doenças, conquistar territórios, acumular riquezas, desvendar o funcionamento do universo, sintetizar a felicidade – será mesmo?
Abduzida pela interatividade virtual na era das telecomunicações, grande parte das pessoas continua a levar uma vida ditada pelo modo de vida capitalista, ordenado pela lógica de produção e consumo mediada pelo dinheiro.
A superficialização das relações afetivas é elemento fundamental para que possa ser normalizado o conformismo diante da exploração das desigualdades socioeconômicas, disfarçada por protocolos e padrões comportamentais disseminados com enorme velocidade pelas vias informacionais, principalmente redes sociais, camuflando o controle exercido sobre mentes, corpos e corações através de memes e vídeos curtos com lições fajutas de empreendedorismo, autoajuda, life coaching e esoterismos genéricos.
O poder criativo, que, por natureza, é disruptivo, tende a ser cada vez mais asfixiado, substituído pela padronização comportamental justificada pelo utilitarismo de que falavam Jeremy Bentham e John Stuart Mill durante a Revolução Industrial e a presunçosa ideia de dominação das máquinas sobre a essência subversiva do ser humano. Escamoteado pela espetacularização da banalidade, o vazio existencial é confinado na repetição de tarefas e rotinas que reduzem a experiência de viver a cumprir prazos, alcançar metas e comemorar conquistas que nada têm a ver com liberdade e autonomia. Pelo contrário, o desejo de completude afasta-se da busca interna pela percepção de si mesmo enquanto sujeito e deforma-se pela obsessão de igualar-se a modelos fabricados e apresentados como ideais por grupos que controlam os meios de produção, comunicação e, por consequência, de existência. Não faltam rótulos para buscar identificação com esse ou aquele e declarar ódio àquele outro.
O desinteresse por desafios ou projetos de vida originais que não se assemelham aos “exemplos de sucesso” e “lifestyles” vendidos por influenciadores é sintoma da incapacidade de perceber que não há forma correta ou adequada de experimentar o emaranhado de infinitas possibilidades e relações de que cada história pode ser tecida.
Não à toa, a arte, essência criativa que questiona o ordenamento sociocultural normalizado, tem sido alvo dos algoritmos emuladores de inteligência. Softwares estão produzindo imagens chamadas de obras de arte, compondo músicas a partir de vozes sem corpo, escrevendo histórias sem significado, simulando realidades através de deep fakes e montagens ultrarrealistas sem correspondência espaço-temporal com os acontecimentos externos aos mundos virtuais.
A criatividade como cura ao mal-estar da modernidade, ao tédio, à angústia, à insatisfação, à ansiedade, é negada às pessoas que são forçadas a sobreviver arrastando correntes, esgotando-se para aguentar mais um dia de labuta; e renegada por aquelas que se acostumaram a viver preenchendo planilhas, iludidas pelas frágeis recompensas que recebem diante de sua obediência inabalável. Na escola, no chão-de-fábrica, no metrô lotado, no escritório, na academia, no shopping center, na balada, na igreja, no quartel, no presídio, no celular.
Ensaiar a vida para vivê-la seguindo cartilhas e manuais, abdicando do exercício da liberdade criativa e do potencial transformador intrínseco ao ser humano, é sucumbir à manifestação mais rasa e conformista da lei do eterno retorno, como provocava Nietsche.
Com óculos 3D e ambientes instagramáveis, é possível assistir ao filme da Barbie (2023), dirigido por Greta Gerwig, sem sequer pensar sobre as críticas trazidas nos moldes de “O Show de Truman” (1998 – direção de Peter Weir) ou sobre “A Sociedade do Espetáculo”, como escreveu Guy Debord em 1967.
E pode parecer contraditório que a criatividade seja, aqui, exaltada como a cura para a alienação, já que é ela mesma criadora de sonhos e fantasias. No olhar de Milton Santos, reside no poder transformador da consciência crítica construir um mundo que possa vir a ser a realidade; para Deleuze e Guattari, isso é o devir – a multiplicidade abarcada por realidades em potência.
Mas como buscar a cura para uma condição que, por tantas vezes, sequer é reconhecida como doença?
De forma avessa ao que pretende a lógica maquínica que nos reduz a (re)produtores-consumidores, o existencialismo criativo surge a partir da voz que questiona e faz perceber que estamos sendo arrastados pela correnteza da performance e da vigilância. Nascer, consumir, estudar, namorar, trabalhar, produzir, casar, pagar as contas, reproduzir. Para cada função, um aplicativo. Para cada ação, uma vitrine. Para cada tarefa, uma recompensa. Para cada fase, uma validação. Até morrer – mas não sem antes deixar o legado (ou sentença) para a próxima geração. Ou a autorização para que usem seu rosto e sua voz em anúncios comerciais.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.