Tanto o tormento quanto seu oposto, a paz, não estão no lugar onde habitamos, mas dentro de nós. Contudo, é possível acontecer algo bom (ou negativo) em determinado espaço físico cujos efeitos nunca mais nos abandonam. E esse lugar pode ser Quixeramobim, Pasárgada, Nova York ou Lunana.
Os efeitos da experiência do professor Ugyen Dorji (Sherhab Dorji) na cidade de Lunana, no Butão (pequeno país da Ásia meridional) foram tão profundos que permanecerão dentro dele para sempre, não importa para onde vá ou o que realize. Este princípio fundamenta “A Felicidade das Pequenas Coisas” (Butão/China, drama, 2019, 110 min.), de Pawo Choyning Dorji.
Ugyen tem 20 anos e mora em Timbu, onde costuma se apresentar como cantor para pequeno grupo de fãs. Depois de concluir o contrato com o governo, ele sonha deixar as aulas para se dedicar à carreira artística na Austrália.
Porém; no último ano do contrato uma surpresa desagradável o espera: o governo o desloca para Lunana, aldeia a 4,8 mil metros de altitude na região do Himalaia, onde vivem 56 pessoas e cujos alunos nem sabem o significado da palavra carro.
O choque cultural desnorteia o rapaz ligado em música pop, celular, fone de ouvido, roupas modernas, gírias e tomado por total desprezo pelos valores culturais do próprio país. Para chegar ao local, terá de caminhar muitos quilômetros montanha acima, pernoitar em locais precários e comer comidas estranhas. E, quando chega, a reação imediata é voltar.
Há questões ligadas à cultura, ao comportamento, à sociedade e até à espiritualidade que cercam a vida do rapaz a partir de então. Trata-se de história tão bonita e tão comovente que corremos o risco de nos entregar à emoção e nos afastar do senso crítico.
Na busca pelo equilíbrio, valhamo-nos de pergunta racional: ensinar crianças isoladas do mundo para que não reduzam a vida a pastorear iaques e colher fungos é mais importante do que realizar o sonho de ser cantor pop? A pergunta maniqueísta se reduz por si só.
Mudemos o enfoque. Quanto valerá conhecer a utilidade de um iaque, o respeito devido a quem ensina, o despojamento (ao menos momentâneo) de si mesmo para se dedicar ao outro, o cuidado com a educação da criança (pois dela depende o futuro), o investimento na cultura e na tradição local e a música ancestral que nos remete ao passado, sua história, experimentos, vivências e evolução?
Este é o ponto central que o roteiro do próprio diretor se propõe a discutir. Cantar na Austrália para público desinteressado não precisa levar a tarja de algo ruim. Experiências desastrosas também ensinam – aliás, ensinaram o jovem Ugyen.
Atormentar-se numa aldeia do Himalaia como se aquele lugar fosse o passaporte para encontro da paz pode ser verdadeiro, mas serão necessárias disponibilidade, abertura e entrega. É preciso querer que seja assim; do contrário, será apenas frustração. De outro lado, o professor não queria ir a esse lugar, mas as circunstâncias o levaram e lhe ofertaram aprendizado.
A experiência de Ugyen, feito pêndulo, vai de um lado ao outro: da remota Lunana à cosmopolita Sidney, de Lunana para Los Angeles. “A Felicidade das Pequenas Coisas”, concorre, neste domingo, 27/3, ao Oscar na categoria filme internacional.
Ou seja, a experiência simples, mas carregada de símbolos de humanidade de uma aldeia do Himalaia pisa o tapete vermelho fake (trata-se de show de TV) de cerimônia repleta de pretensos brilhos e notoriedades mundanas. Contudo, não demonizemos os falsos brilhos que se perdem no ar nem endeusemos a nobreza das coisas simples, que sugerem permanência. Tampouco desprezemos o simples e o obscuro e nos entreguemos às inconstâncias da fama.
O filme toca-nos na medida em que abrimos corações e mentes para o que ele tem a nos dizer. Mais importante do que escolher entre um ou outro caminho, é saber buscar, no mundo (e não importa o lugar), a essência humana. Encontrá-la exige sabedoria – que, se supõe, chega com a velhice.
Mas Ugyen tinha 20 anos quando descobriu a música-essência dele – prerrogativa adquirir tão cedo tamanho presente. E a descoberta dele facilita explicar (e entender) a comoção que o filme provoca ao final.
“A Felicidade das Pequenas Coisas” chega ao streaming, na plataforma Now, no dia 30 de março
João Nunes é jornalista e crítico de cinema