Para quem acreditava em um 2023 mais tranquilo, estável e utopicamente reconhecido pelo apaziguamento da polarização política visceral fomentada nos últimos anos, as duas primeiras semanas deste novo ciclo têm sido, na melhor das hipóteses, intensas e chocantes.
Dia 01 de janeiro foi marcado pela posse do Presidente democraticamente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, que, na ausência do ex-presidente derrotado Jair Messias Bolsonaro, recebeu a faixa presidencial no Palácio do Planalto das mãos de uma comitiva representativa do povo brasileiro, homenageando simbolicamente as mulheres, as crianças, pessoas negras, moradores de comunidades marginalizadas, a classe trabalhadora, pessoas com deficiência, povos indígenas e profissionais da educação.
Centenas de milhares de pessoas ouviram ao pronunciamento presidencial, que destacou a urgência de retomar investimentos em Educação, Saúde, Emprego com salário digno, combate à fome e buscar, através do diálogo, soluções para superar as muitas crises que o país enfrenta. Houve música ao vivo, encontro de movimentos populares e celebração da diversidade cultural brasileira no “Festival do Futuro”, festa que começou na manhã do dia 1º e virou a madrugada do dia seguinte de forma pacífica e comemorativa.
Durante a semana, as aglomerações golpistas ao redor de quarteis pareciam perder forças, enquanto fake news continuavam insuflando ódio e especulando sobre a suposta continuidade do governo do ex-presidente, que fugiu para os EUA nos últimos dias de seu mandato.
Apesar da atenção das autoridades do governo federal diante de uma possível tentativa de golpe, tudo leva a crer que um dos dias mais decadentes da História da Democracia brasileira foi produto de uma sabotagem articulada com a conivência do então governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (afastado do cargo pelo Ministro Alexandre de Moraes), e do então Secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres (agora exonerado), ambos bolsonaristas e com grande influência sobre alas antidemocráticas das polícias que atuam em Brasília.
Com financiamento de oligarcas do agronegócio e sob incentivo de influencers e empresários da fé, caravanas de pessoas transtornadas chegaram à Praça dos Três Poderes e, na tarde do dia 08 de janeiro, protagonizaram uma das maiores e mais terríveis demonstrações de brutalidade, selvageria e desrespeito contra o espírito de civilidade, a memória cultural e os fundamentos morais em que se alicerçam a Sociedade Brasileira. Cerca de quatro mil extremistas, profanando as cores da bandeira, tiveram pouca dificuldade para transpor as ineficazes barreiras policiais montadas e invadiram o Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), o Palácio do Supremo Tribunal Federal (sede do Poder Judiciário) e o Palácio do Congresso Nacional (sede do Poder Legislativo).
Se havia cidadãos e cidadãs de bem entre esses invasores, deixaram para trás qualquer resquício de cidadania, bons costumes ou cristianismo, amalgamando-se em uma legião de fanáticos raivosos que destruíram tudo que encontravam pela frente: portas, janelas, vidraças, móveis, computadores, documentos, objetos históricos, relíquias e obras de arte. Rasgaram, quebraram, atearam fogo, urinaram e até defecaram como animais alucinados na Casa do Estado brasileiro, onde lideranças políticas deliberam sobre o futuro da nação.
Agrediram jornalistas, funcionários e funcionárias dos Palácios e até mesmo policiais. Tal como terroristas de organizações criminosas como Estado Islâmico, tinham como objetivo não só destruir e vandalizar, mas registrar suas atrocidades e compartilhá-las nas redes sociais, em êxtase, como forma de demonstrar força e intimidar a população ao negar qualquer capacidade de diálogo ou respeito às Instituições.
Com enorme atraso, em obediência a um Decreto de Intervenção Federal assinado pelo Presidente Lula, as forças policiais do Distrito Federal conseguiram controlar os criminosos que assolavam o patrimônio público e reestabelecer a ordem na capital do Brasil, num cenário vergonhoso de caos e destruição comemorado por golpistas antidemocráticos como repetição à invasão do Capitólio, nos EUA, em janeiro de 2021.
Longe de desestabilizar a organização institucional do Estado brasileiro ou desmoralizar o governo democraticamente eleito de Lula, os atos criminosos expuseram ainda mais a forma de pensar e agir de alas fascistas do bolsonarismo, requisitando que se recupere, com diálogo e bom senso, a cooperação entre os Três Poderes, bem como governos Municipais, Estaduais e Federal , para proteção irrestrita da Democracia e de políticas públicas benéficas ao povo brasileiro, nos termos da Constituição Federal de 1988.
Lula conseguiu reunir, prontamente, governadores e governadoras representantes das 27 Unidades Federativas do Brasil, além da presidência do STF, da Câmara Federal, do Senado e da Frente Nacional dos Prefeitos para, nas palavras do Presidente da República, “prestar solidariedade à Democracia e ao povo brasileiro.” Mesmo lideranças de direita, até então aliadas a Bolsonaro, como Tarcísio de Freitas (REP, governador de São Paulo) e Romeu Zema (NOVO, governador de Minas Gerais) manifestaram repúdio à natureza golpista, violenta e criminosa dos atos bolsonaristas. Escondido em outro país, o ex-presidente derrotado comparou a destruição de Brasília a manifestações, segundo ele, “da esquerda”.
Importante lembrar que movimentos sociais de esquerda jamais invadiram espaços públicos para destruir e vandalizar bens e patrimônios da nação. Mesmo nas ações do Black Bloc em 2013, os danos patrimoniais, envolvendo pichações em vitrines de bancos, faixadas de prédios e incêndios de entulhos em ruas e avenidas, foram incomparavelmente menores do que os causados em Brasília este ano; além disso, a resposta da Polícia contra os crimes cometidos por esse grupo sempre foi extremamente dura e repressiva.
Aliás, mesmo em manifestações pacíficas e democráticas protagonizadas por grupos e movimentos sociais de esquerda, a resposta da Polícia sempre foi extremamente dura e repressiva. Quando famílias do MST reivindicavam reforma agrária ocupando latifúndios improdutivos; quando trabalhadores e trabalhadoras do MTST cobram direito constitucional à moradia se abrigando em prédios e terrenos abandonados; quando a CUT e movimentos sindicais vão às ruas defendendo condições dignas de trabalho; quando a UNE, UJC, UJS, estudantes, professores e professoras defendem a universalização do acesso à Educação de qualidade; quando movimentos que combatem o genocídio das mulheres, de pessoas pretas, LGBTQIA+, povos originários começam a ocupar espaços de poder e decisão – em todos esses casos a resposta contra agendas de justiça social, igualdade de oportunidades e ampliação das liberdades constitucionais é reprimida e atacada.
Segundo o Ministério da Justiça, mais de 300 prisões foram efetuadas, em flagrante, nos atos criminosos de destruição e vandalismo em Brasília dia 08. O número teria passados dos 1500 no dia seguinte. Pessoas delirantes, raivosas e mal intencionadas estão descobrindo como funciona o sistema prisional brasileiro, exigindo “direitos humanos”, acusando o Estado de tratá-las como “numa ditadura”. Teriam sido fuzilados a sangue frio, abatidos como gado, sem direito a defesa, se vivêssemos numa ditadura de fato, como querem esses mesmos extremistas. Como foram tratados aqueles que lutaram pela democracia no Brasil entre 1964 e 1985; como são tratados até hoje jovens que vivem marginalizados nas comunidades espalhadas pelas grandes cidades, ativistas e lideranças indígenas, ribeirinhas e quilombolas cuja existência continua sendo negada e combatida pelos defensores do conservadorismo colonial-escravista e do militarismo em nosso país.
Chefes de Estado do mundo todo, incluindo vários Presidentes e Primeiros-Ministros, enviaram mensagens ao Presidente Lula manifestando apoio e prontidão para reforçar medidas que reafirmem a escolha do povo brasileiro pela manutenção da Democracia. Até mesmo o “Mercado”, esse ente tão parcial e controverso, pareceu reagir bem à destruição da Sede dos Três Poderes ao perceber a firmeza e o comprometimento do Estado em garantir a estabilidade política, econômica e social em nosso país.
Sequer chegamos à primeira metade de janeiro e os acontecimentos reordenam prioridades de um país que terá que enfrentar o legado nefasto do governo Bolsonaro, marcado por negligências, incompetência e corrupção.
Talvez seja justamente esse o motivo de figurões da política e dos negócios financiarem e sustentarem atos golpistas, terrorismo e caos social: quando a poeira baixar, a justiça será feita. Não com campos de extermínio e paredões de fuzilamento, como defendem extremistas, mas com a força da Lei, legitimidade popular e o juízo inabalável da História.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.