Ao revisitar clássico da literatura mundial, o cineasta francês Xavier Giannoli conhecia os riscos de inevitáveis comparações com outras adaptações da obra de Honoré de Balzac (1799-1850) – não contam as relativas ao livro propriamente porque são linguagens distintas. Pois “Ilusões Perdidas” (Illusions Perdues, França, drama, 2021, 149 min.) cumpre o papel de atualizar a história, como se, de tempos em tempos, alguém nos lembrasse da condição humana marcada por ambição, traições e profundo desrespeito para com nossos pares.
O filme traduz o relato cruel sobre os protagonistas da obra do escritor francês como pinceladas da terrível natureza humana, dominada pelo insaciável ego e suas exigências, e que nenhum esforço será suficientemente capaz de preencher.
Não se trata de julgamento porque ninguém está imune quando se fala dessa natureza. O peso dela se encontra em qualquer idade, mas na juventude estamos mais expostos – o tempo das ambições desmedidas e, no qual, o céu torna-se o limite.
E, no percurso para alcançá-lo, os jovens correm atrás do vento sem perceber que, cada vez mais, ficam menos sensíveis à ética, enquanto os velhos tornam-se destemidos porque o medo de feri-la se definhou e, calejados e com as consciências adormecidas, livram-se dos perigos porque os conhecem bem.
No início, a quase onipresente narração de Anastazio (Xavier Dolan) incomoda um tanto, mas, aos poucos, nos damos conta que se trata, exatamente, do sujeito encarregado de nos lembrar da tal condição humana.
Ele é o escritor que se faz amigo do protagonista Lucien de Rubempré (o ótimo Benjamin Voisin) e, de cara, revela o destino (“trágico”) do também escritor, só que pobre e embriagado pela ambição de se tornar nobre e famoso.
Lucien enamora-se da bela e calculista Louise (Cécile de France), força o uso do nome da mãe a fim de alcançar a nobreza, afasta-se da protetora após recusa do meio aristocrata, acaba nos braços de atriz de teatro popular, troca a literatura pelo jornalismo “marrom” (no deprimente papel de “traficante de palavras”), vende a alma ao diabo e perde o medo de “fabricar” notícias falsas – e nem estamos em 2022, mas em meados do século 19.
Xavier Giannoli traduz esse universo de quase dois séculos atrás, de quando o livro foi publicado (1837), usando artimanha simples: as cenas são, em geral, concebidas em planos e em ambientes fechados e criam atmosfera claustrofóbica a denunciar a angústia dos personagens – mesmo quando alegres nas festas, nas cenas de sexo, ou comemorando “conquistas” regadas a champanhe.
Frases do narrador ilustram esse modo de vida. “Se for para fracassar que, ao menos, seja em Paris”. Ou: “o amor dura o tempo de imprudência”. Ou ainda: “Para escrever sobre tudo é preciso viver tudo”.
A cinematografia de Christophe Beaucarne ressalta a ambientação se utilizando das luzes indiretas e de nuances de cores predominantemente amarelecidas que, com auxílio do figurino e da direção de arte, nos remetem ao passado.
O próprio diretor adaptou o livro e desenhou um roteiro direto e didático para que qualquer espectador tenha acesso à história tão comum a todos, separados apenas do contexto em que plebeus e aristocratas duelam em campo de batalha que, ora um e outro segmento se sobressai e, ora, se juntam para atacar objeto comum. Neste caso, o trágico Lucien.
A música também permite o acesso do espectador menos acostumado a filmes históricos ou de época. São músicas que entraram para o seleto repertório de clássicos populares utilizados com frequência na dramaturgia. O mérito está na aproximação do público por meio de melodias bastante conhecidas.
Se Lucien, mesmo sem saber, encontra um amigo em Anastazio, seu oposto, Etienne (Vinvent Lacoste), investe no afeto enquanto for conveniente. Ele não é o único nem a personificação do vilão. Trata-se de uma faceta da vilania cheia de maldade das ficções. Depois de pagar alto preço pela ambição, Lucien enfrentará ação tão poderosa e maligna quanto, pois Etienne confia na vingança como melhor trunfo.
A vida está repleta dos ingredientes indigestos relatados por Balzac. Contudo, também há elementos dignos. Como na frase decisiva dita a Lucien, por Anastazio, ao final: ao contrário de sentimentos que entorpecem, a frase evoca algo mais edificante e com o poder de nos fazer despertar.
O filme estreia nesta quinta-feira, dia 9/6, nos cinemas; em Campinas, pode ser visto no Cinépolis do Galleria Shopping
João Nunes é jornalista e crítico de cinema