Depois de passarmos por tantos desconfortos nos últimos quase dois anos, uma das muitas sequelas herdadas da pandemia é nossa recusa, às vezes, inconsciente de encarar filmes (e outras manifestações artísticas) que remetam à dor e ao sofrimento. Filmes como Algum Lugar Especial (Nowhere Special, Itália, Romênia e Reino Unido, 2020, 96 min.), de Uberto Pasolini, sobre um pai que, sabendo-se com pouco tempo de vida, busca alguém para cuidar do filho, pois a mãe do garoto o abandonou e voltou ao país de origem, a Rússia.
Por que reservaríamos o espaço do descanso e do lazer para acompanhar tamanha aflição? Puro masoquismo? Não. Há várias razões e uma delas é que a experiência do outro ensina.
O roteiro do próprio diretor (também produtor), baseia-se em história real – portanto, trata-se da vida do modo como a vida se apresenta. Não custa evocar a tragédia grega que reunia milhares de pessoas para assistirem à encenação do grande drama humano e, uma vez identificada com o que se passava no palco, as pessoas atingiam a catarse, como se as dores dos personagens fossem (e eram) delas.
Com ou sem pandemia, seguiremos vivendo nossos problemas, uns mais, outros menos penosos. A história triste do garoto, claro, provoca-nos empatia – que gera identificação – porque somos todos iguais na dor. O filme não revela a doença do pai, o limpador de vidros John (James Norton) nem os motivos pelas quais a mãe decidiu partir. Em dado momento, o pai afirma que ela não suportou viver longe do país natal.
Sem ela, John se vê sozinho com o filho Michael (Daniel Lamont) e acaba assumindo papel duplo de pai e mãe: dá banho no garoto, leva-o e busca-o na escola, prepara-lhe a comida, passeia e conta histórias para ele dormir.
Este dado do personagem mostra como os homens contemporâneos evoluíram, pois assumiram participar da vida familiar de maneira mais efetiva e afetiva. E o afeto fica evidente – prova do quanto ganham filho, pai e toda a família quando a participação masculina ocorre. E não faz mal algum, como se concebia em gerações passadas, pelo contrário, beneficia.
O filme trata dessa dedicação de John para com Michael, enquanto cumpre programa social que busca famílias interessadas em adotar o menino. Poderia até usar certo humor nessa busca ante algumas bizarrices enfrentadas por John e a assistente social Shona (Eileen O’Higgins).
Porém, o diretor escolhe ter absoluta reverência no trato do problema e desperta a simpatia do espectador no envolvimento dos personagens com os casais dispostos a adotar. Casais e até mulher solteira, pois uma das interessadas é Lorreine (a irlandesa Niamh McGrady), que perdeu um filho.
O respeito do diretor pelo drama real do outro faz de Algum Lugar Especial um filme tocante que jamais exacerba as emoções nem extrapola os limites do sofrimento, por si só, explícito na narrativa. A condução serena e minuciosa obedece seguidos silêncios porque a ideia é, mesmo, evitar o espalhafato e centrar as atenções na espera do pai e do filho por solução.
A sobriedade vem acompanhada por atuações compenetradas, sem exibicionismo, e na qual chama a atenção o trabalho de Daniel Lamont na maneira tristonha de interpretar o garoto manifesta no olhar e nos diálogos de poucas falas – como se não tivesse ou não soubesse o que dizer. Mesmo assim, devolve afeto ao pai – característica que este tem de melhor – e gera empatia do espectador.
A música de Andrew Simon McAllister obedece o mesmo padrão: melancólica, mas bonita e capaz de transmitir calor e aconchego. A fotografia de Marius Panduru não se sobressai porque não quer aparecer mais do que a história; ela, apenas, cumpre com competência o papel devido.
Em “Divino Maravilhoso”, Gilberto Gil e Caetano Veloso assinam um verso extraordinário. “É preciso estar atento e forte/não temos tempo de temer a morte”. Ela é inevitável, não há porque temer e nem adianta. Ao tocar nesses dois grandes temas, Algum Lugar Especial ensina que, se não há tempo de ter receio da morte, aproveitemos para, sem medo, desfrutar da vida.
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João Nunes é jornalista e crítico de cinema