O Brasil assistiu, há alguns anos, ao deprimente espetáculo de pessoas envolvidas em negócios escusos que foram descobertas e condenadas. Surpreendentemente, se apresentaram aos tribunais dispostos a denunciar seus pares e chefes. Teriam tomado oportuno banho de ética, ou estavam envergonhadas ante a família, a sociedade ou a nação? Nenhuma das alternativas.
Apesar de roubar, mergulhar em falcatruas e se fartar das benesses do dinheiro público, elas ganharam dois prêmios: se fizeram parecer honestas e corajosas ante a opinião pública e delataram – supostamente, para beneficiar o país quando, de fato, só queriam diminuir as próprias penas.
Em “O Traidor” (Il Traditore, Itália, França, Alemanha, Brasil, 2019, 153 min., 16 anos), o cineasta italiano Marco Bellocchio (roteiro dele e de Ludovica Rampoldi, Valia Santella e Francesco Piccolo) narra a história do mafioso Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino) que, tomado de pudores, depois de exercer cargo de alto escalão em organização mafiosa italiana, decide denunciá-la.
No cargo, ele matou ou deu ordens para matar, e defendeu os “direitos” da organização de roubar, assassinar e se impor pela força; afinal, estava mergulhado na guerra generalizada de chefes da máfia siciliana pelo controle do tráfico de heroína.
Foragido no Brasil, soube que os mafiosos executaram o filho dele e que está sendo cassado.
Um julgamento coloca os principais líderes na cadeia, enquanto a polícia brasileira o prende e o extradita para a Itália. Frente ao juiz Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi), ele resolve “trair” as normas da organização e contar os podres.
As sessões do julgamento são verdadeiro teatro, como diz alguém referindo-se aos valentões destemidos com armas na mão ou respaldados pela organização. Presos, parecem frágeis donzelas de contos de fadas: desamparados, injustiçados, inocentes e imaculados, pedindo clemência e fingindo ataques de pânico, desmaios e males súbitos.
E são estúpidos, mal-educados, gritões, avessos às regras sociais e profanadores do sagrado, pois fazem o sinal da cruz e invocam Deus e a moral. Um deles se diz casado com única mulher (assim como o pai), como se tal estado significasse virtude garantidora do direito de matar.
A primeira parte do filme é uma sequência insuportável de mortes perpetradas por gente que não tem o menor apreço pela vida. Algumas, como o atentado contra o juiz (comemorada com muita festa), de uma crueldade que nos faz repensar os valores humanos.
Tudo feito em nome do poder e do dinheiro e simbolicamente entregues à família de sangue como esforço do trabalho e modo de valorizar o laço afetuoso e justificar a violência.
E os rituais fúnebres são cercados pelos exageros (nos ritos propriamente e nas manifestações familiares), em especial das mães, responsáveis por cuidar da família, enquanto os maridos aumentam as contas das mortes executadas por eles dia após dia.
A fotografia de Vladan Rodovic capta bem a atmosfera de morte ao conceber imagens quase sempre na penumbra, porque é nas sombras que o horror se oculta. Os cenários, também, quase sempre, claustrofóbicos são casas soturnas, porões, igrejas ou tribunais e com figurinos que, quando muito, variam o tom para azuis, obviamente escuros.
Em meio a tudo, a direção tenta dar lugar mitológico a Tommaso Buscetta, como se ele tivesse contribuído para desmascarar a organização. A denúncia dele é base do filme; porém, torna-se impossível não lhe atribuir responsabilidades, pois ele comandou sob preceitos da organização – a cena final é atestado da índole desse homem, cujo ato atende, apenas, ao sentimento de vingança.
Filmes sobre máfia tendem emprestar glamour às famílias: elas adoram cantar e são amorosas e, os patriarcas, dóceis com netos, filhas e esposas – Cristina, a mulher de Buscetta é a brasileira Maria Fernanda Cândido. Esses elementos todos estão em “O Traidor”, mas nenhum afeto sobrevive a tanta violência.
O filme estreia nesta quinta-feira, 14 de abril, nas principais cidades do País e, em breve, nas plataformas de streaming
João Nunes é jornalista e crítico de cinema